Carina Bratt
Depois do invento do ‘prato vazio,’ as pessoas passaram a morrer de fome com mais felicidade e sem perder aquele sorriso alegre no rosto enrugado pelas mazelas do fatídico azar do não ter o que comer.
Do livro ‘Quem manipula quem?’ de Ciro Marcondes Filho, editora Vozes, Petrópolis, 1986.
EM UM PEQUENO bairro periférico nas imediações da avenida onde moro, as ruas paralelas que cortam os diversos logradouros de uma favela enorme, ainda são de terra batida, ou seja, não receberam as comodidades do asfalto de pele macia e elegante. Mesmo passo, não há luz elétrica, nem saneamento básico. Todos os quase vinte becos e vielas, morro acima, mostram esgotos à céu aberto e amontoados de lixos espalhados aqui e acolá. Apesar desse quadro, esses logradouros propalam, além dos ratos e baratas, cachorros e gatos esfomeados, à dura espera do que comer.
Em trilho paralelo, damos de cara com os nomes dos políticos que passaram pela prefeitura e pela municipalidade brilharem ostensivamente. Contudo, na realidade, os figurões eleitos pelo povo, à linha da miséria, nada fizeram ou melhor, nada fazem, ou nada farão para merecer uma placa indicativa pendurada nos casebres e mocambos a paus a pique, bem ainda nas árvores que insistem em fazer sombras para quando o sol de meio dia se mostra mavioso e escaldante.
Dizem os mais longevos, que a sacanagem das mudanças dos nomes dos personagens nas ruas e praças é antiga. Virou moda. Aliás, essa ideia da prática escabrosamente reiterada notadamente em tempos de eleições, as mudanças dos prefeitos e dos vereadores dos ladrões e sacripantas de plantão, vem passando de batismo em batismo, desde que o primeiro vagabundo sentou o rabo sujo à frente da prefeitura (o mesmo acontecendo com o presidente da câmara) desde os idos dos anos sessenta.
Assim sendo, a reiteração ilusória vem sendo mantida até os calcanhares dos mandatários atuais. A maioria dos logradouros conta histórias de séculos passados. Todavia, nenhuma mais infeliz, que a de Ana Carolina, uma menina de treze anos, que escolhi ao acaso. Dona de um rostinho de princesa, onde um bonito par de olhos verdes encanta qualquer criatura que no dia a dia, ao cruzar com ela, não deixa de admirar a sua formosura. Mesmo com o diploma de ‘encantadora’ a mocinha carrega em sua rotina de vida, um sério problema.
É pobre. Em aparte, a fachada de rainha, a barriga não para de roncar em pedidos veementes de socorro. A mãe dela, dona Beatriz, trabalha na residência do doutor Paulo, aqui na Borges de Medeiros, num esforço hercúleo para trazer a comida para casa. Sua fadiga, nesse sentido, em vista das duras realidades da vida as fazem (mãe e filha), muitas vezes encarar não só os pratos vazios, mas também e, principalmente, a mesa das refeições, a começar pelo café matinal acabando, ou na tristeza do armário de mantimentos sem nada para botar a cozinhar nas panelas.
— Prato vazio – protesta sempre dona Beatriz com a vizinha de infortúnio —, ‘não faz as lumbrigas sorrir.’
Nos encontros para o que deveria ser um alento, Ana Carolina desenha no fundo do prato, o dedo em riste figuras as mais diversas imaginando um banquete que poderia saciar a sua fome. Dona Beatriz, com um misto de dor, e, ao mesmo tempo, de esperança, promete a si mesma, numa prece silenciosa, que ‘o amanhã será mais generoso.’
Esta crônica simples e singela que escrevi para este domingo, é, sem dúvida alguma, o retrato em preto e branco, com pitadas de desânimos e angustias, desconfortos e esmorecimentos de muitos brasileiros espalhados de norte a sul, sem tirar nem pôr, como, mesmo lado da moeda, de muitas e muitas e não sei quantas famílias à espera de um milagre que não chega. Em verdade, amigas da ‘Grande Família Cão que Fuma,’ grafo aqui a história nua e crua de um mundo onde a abundância e a escassez dançam de mãos dadas.
Desvairam em um baile cruel, onde, mesmo modo, o prato vazio, a panela sem nada, o fogão esquecido num canto sem a chama do gás faltoso, se transformaram em um lembrete constante das desigualdades e das misérias que nos cercam. Em rumo igual, é uma ‘crônica-alerta’ que busca mostrar o cotidiano corajoso de quem não se assusta, de quem não desiste, nem joga a toalha... tampouco, daquelas mães (como dona Beatriz) que não se rendem ao fantasma infame e ignominioso do ‘prato vazio.’
CONCLUSÃO FINAL.
Vejo, no catemerino, a luta, a peleja, o ‘se virar nos trinta’, de uma multidão infindável e a cada dia mais vultuosa de mães e pais de família correndo desesperados para enche-los, não só para si, mas para todos que compartilham do mesmo destino ingrato e sem as melhoras de um futuro próspero.
— Prato vazio, bem sabemos, não enche barriga,’ mas a solidariedade e a compaixão podem abarrotar, entulhar e lotar corações e almas, grosso modo, transformar vidas vazias e sem um pingo de alento para seguirem em frente, sem as máscaras degradantes do ESMORECIMENTO.
Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 12-5-2024
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