Carina Bratt
CAMINHO SOZINHA, pela rua, por essa mesma rua que até bem pouco tempo atrás, se fazia perfeita e aconchegante, totalmente nua dessa camada negra de asfalto podre. Sigo por ela, os pés descalços de meias e sapatos apertados tentando desvendar sentidos imersos. De repente, uma pedrinha apressada salta de uma reentrância e me bate carinhosamente na sola, dando um ‘oi.’
Na verdade, essa pequena e minúscula criaturinha assume o controle dessa
brutalidade trazida pelo asfalto e percebo que está me pedindo que pare e
escute o que precisa me dizer. Assim como ela, todas as demais coirmãs que em
seguida acorrem à minha figura, querem me contar uma história. Alguma coisa
acontecida, que ficou modorrada no esquecimento do ‘ontem.’
Cada pedrinha, eu sei, detém um registro escondido na ‘manga do casaco
que se rasgou.’ Enquanto decido se paro ou não, o asfalto quente e
intransigente, entra em cena. Se mete, poderoso, se achando dono de si. Beija
meus pés. Apesar de quente, é um toque sem gosto definido. Um ósculo insosso,
que não me diz absolutamente nada. Pelo contrário, me espanta e me assusta.
Mais que isso: me enraivece. Esse pavimento impiedoso me aviva um
período de uma distante ‘era passada,’ porém, empandinado de boas memórias e
glórias inesquecíveis. Tento não dar importância ao sarcástico betume espesso.
Menos ainda ao seu beijo de gosto amargo cheirando à Judas. Por assim, me concentro no chão sepultado de
terra batida. Ele ainda vibra com os passos dos que vieram antes de mim.
Cada rachadura é um sussurro do tempo. Tipo assim, um hino melancólico e sem fim. De ambos os lados das calçadas, prédios gigantescos (inclusive a torre onde moro), parecem se confundir com o azul do céu mavioso. Nada dizem, apenas me observam calados e pensativos. Não ligo para eles. Meus sentidos estão atentos e aguçados para o que poucas pessoas podem ver e perceber, ou seja, o verdadeiro sentido da vida, o ‘real.’
O abstruso simplório que se fez irreal. E o que vejo, nesse ‘umbrático,’
que nesse momento fugaz se agita
majestoso e corre pelos labirintos da minha mente, se tornam conscientes
e bem aqui, no fundo do meu ser, me acabrunha e me entristece? Simples de
responder as minhas indagações.
São almas errantes. Velhinhos e senhorinhas que passaram (ou melhor),
seguem cruzando estabanadamente para cima e para baixo, numa eternidade de
velhice dispersa e carcomida, enquanto crianças eufóricas que mesmo destino se
foram, correm, gritam, têm sonhos iguais a mim, garotos e gurias descalças,
reacendendo um amontoado estonteante de brincadeiras fascinantes que hoje não
fazem questão de mostrar as suas peraltices aos novos e modernos.
Essa rua descalça é o palco de vidas que por algum tempo se
entrelaçaram. Apesar dos janeiros passados, continua sendo o lar aconchegante
das quimeras que sobraram e se enterraram pelo progresso em nome de dias
melhores. Cenas de um ontem falecido, audaciosamente desabrocham. Voltam da
sepultura e se achegam. Me lembra ‘Incidentes em Antares,’ de Érico Veríssimo.
Os insepultos, como nesse romance magnânimo, reverenciam, fazem festa à
minha aparência. Depois somem, se evaporam, se grudam irmanados numa fumaça
esbranquiçada. Nessa vida sem calçados e chinelos, sem havaianas e botas, nesse
tempo de rua sem cobertura, a simplicidade se fazia na mais ingênua e doce
riqueza, onde o contato direito com a terra virgem lembrava, ou melhor, ainda
recorda a natureza.
Aqui o silêncio do tempo findo, do tempo perdido, do tempo que não
retroage, enfim, as suas diásporas a todo momento clamam mais alto que qualquer
palavra dita. Entendo que os passos meus, descalços de meias e sapatos
apertados, é como uma promessa que retorna do nada berrando à plenos pulmões
para ser escrita. Grafada numa crônica sem data, para ser lembrada depois,
muito depois, quando eu me for daqui.
Essa rua de sorriso novo, nada me deixa para ser lembrado ou recordado.
Em contrário, o descalço dela, sem o escuro caliginoso do asfalto, me ensina a
ser forte, a ser mais presente entre os que agora me veneram. Me mostram que
necessito ser resiliente, e sentir o mundo sob meus pés com mais carinho e
atenção, e o melhor de tudo, a ser ou a me fazer verdadeiramente presente
dentro de um tempo onde tudo aquilo que os momentos de minha vida me
transportam, sigam em paz e em harmonia flexível para um distanciado sem volta.
Enquanto o dia se despede com um pôr do sol dourado, me sintonizo ao Pai
Maior e agradeço à vida. Retribuo por esse novo e intenso puro, destituído de
vaidades, sobretudo, por deixar euzinha, ainda que por um momento,
deslumbrantemente encantada e inteiramente cheia de ESPERANÇAS, SOLTANDO
FULGORES por todos os poros de meu corpo.
Título e Texto: Carina Bratt, do Rio de Janeiro, 28-4-2024
Faltava apenas a chegada da hora certa
Súbita tempestade
Esse medo bobo que mantemos dentro de nós
Pelo olho mágico
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