terça-feira, 30 de abril de 2024

[Aparecido rasga o verbo] O terror inesperado

Aparecido Raimundo de Souza

A NOITE QUENTE seguia como um inferno de portas abertas. A minha casa, toda em penumbra se fazia silenciosa. As luzes apagadas. Eu estava prestes a me aconchegar na cama. Faltava apenas desligar a TV, ligar o ar condicionado e cair nos braços de Morfeu. Foi nesse meio tempo, como se saída de um pesadelo, ela apareceu do nada. Alto lá: ela quem?! A barata! Seus apêndices se moviam com uma agilidade perturbadora, e suas asas tremulavam como um aviso sinistro onde meus olhos esbugalhados podiam ler em letras garrafais: “não me toque.”
Apesar desse aviso impoluto, me armei de uma vassoura e, como um bruxo saído de uma dessas histórias de terror, montei no cabo e parti com tudo para o ataque:
— Vou te pegar... desgranhenta, vou te esmagar...

A princípio, confesso, fiquei meio que paralisado. Meu coração batia descompassado. Meu cérebro, todavia, mais esperto que eu, imediatamente entrou em modo de alerta máximo. Apesar de todo aquele desvelado quadro de comunicação hostil (“não me toque”), parti com tudo. Literalmente voei para cima da infeliz.

Enquanto atacava, me questionei como algo tão pequeno poderia causar um medo devassadamente paralisante em mim? A resposta ao meu questionamento se fazia enraizada em meus instintos mais primitivos. Engraçado, que apesar de ser maior que aquela criatura, não me senti como o senhor Dino da Silva Sauro, o megalossauro chefe da família dos Dinossauros, porém, me pus na pele do pequeno Baby, berrando furioso e a plenos pulmões, “não é a mamãe, não é a mamãe.” Por conta de a barata não ser a mamãe, caí matando. Segundo lecionava minha bisavó Eloisa, nossos ancestrais que “vagavam por campos abertos e cavernas escuras, aprenderam a temer a noite. Só a noite. Nada além.”

A escuridão trazia perigos desconhecidos, e aquela onívora, com as suas antenas ondulantes e movimentos rápidos, representava uma ameaça noturna. O mecanismo de defesa evolutivo da dita cuja (como eu), em contínuo, entrou em ação, alertando perigo iminente. Era assim para qualquer sinal de presença considerado estranho. E eu, por meu turno, representava, para ela, um espécime de outro planeta. O certo é que ali estava uma dessas filhas do capiroto em carne e osso me torrando a paciência, me tirando a paz e o sossego. A me ver, pois, pulando sobre a sua cacunda, alardeou, dona de si me desafiando:
— Pretendo me banquetear nos seus pratos, e, claro, nos seus restos de comidas espalhados por aí.

Fato inimaginável aconteceu depois, quando num dado momento dos nossos corre-corres, a barata deu de fuça fechada comigo. A ordinária caminhou apressada imprimindo voltas ao meu redor. Meu terror se intensificou. Imaginei, ainda que hipoteticamente as suas patas rastejando, deixando um testemunho de sujeira e germes sobre meu esqueleto. O asco se misturou ao nojo e a minha mente entrou em modo de autopreservação. Quem poderia imaginar que um pequeno ser tão minúsculo seria capaz de desencadear tanto pânico, ansiedade e mal-estar generalizados em uma pessoa centrada como eu?
— Puta que pariu — blasfemei sem parar de aplicar vassouradas após vassouradas!

Um trauma específico se desencadeou na minha fobia. Uma crise assim tipo “bodosa-galopante.”

Talvez nos idos da minha infância, uma barata tenha voado em minha direção ou, via outra, transitado sobre meu rosto, passado pelo meu nariz, cheirado meu rabo, depois meus olhos, sei lá, não importa... essas lembranças indubitavelmente me trouxeram ou melhor dito, ainda me trazem momentos cruciais. Além disso, os comentários negativos constantes de meus pais e amigos mais próximos podem ter projetado, em paralelo, um assombro estupefato em minha cuca desde que me entendo por gente. “Cuidado com as baratas!” alertava sempre que podia, minha mãe” Acho que por conta dessas palavras, acabei por internalizar o que em dias de agora chamo de “perigo iminente.”

Me dei ao luxo de pesquisar sobre as baratas. Há um nome para esse “medo-susto-arrepiativo” intenso relacionado a elas: catsaridafobia. Meio esquisito, estrambólico, entretanto diferente, de certa forma, excêntrico e aviadado. Quando nos deparamos com elas, segundo o livro “Quem tem medo de baratas”? do professor, escritor e pesquisador doutor Baratôncio Coleoptero, — “nosso corpo reage como se enfrentássemos um predador feroz. O coração dispara, as pernas tremem, as vistas escurecem, a bunda entra em turbulência de caganeira desordenada, a alma chora e o desejo de fugir se faz irresistível.”

Naquela noite, enquanto a barata continuava a sua dança sinistra pelo chão, eu me vi lutando contra meu próprio instinto. E tome vassouradas. Uma, duas, três... a razão dizia que a acromania apenas se intensificava pela presença do inseto. Em paralelo, o medo ancestral sussurrava em meus tímpanos, “vai, vai, vai, acaba com ela.” No final, a barata venceu. Fugiu, suando em bicas. Me afastei, deixando-a reinar em seu (seu não, meu) pequeno domínio escuro. Apesar de fracassar com as vassouradas, percebi que a covardia em face das baratas continua ativo e obviamente escrito em meu DNA e não só nele, em meu corpo, grafado da planta dos pés à raiz dos cabelos, bem ainda na minha cara de besta quadrada e mente insana de rato de esgoto. A bem da verdade, é uma história que se repete toda vez que encontro um desses pequenos seres que ainda agora, aos setenta e um, seguem despertando um cagaço “furdunçoso” em todo meu estado de espírito “amedradado” por essas pequenas e poderosas representantes das famigeradas Blatídeas Blattidaes.

Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 30-4-2024 

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2 comentários:

  1. Viralizou o vídeo de um homem ‘atacado’ por uma barata em um bar no centro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A cena ‘estrepitótica,’ foi vista por quase dois milhões de vezes nas redes sociais. Isso prova que a ‘galera’ de plantão sem um pingo de juízo é sádica e gosta de ver as pessoas se danando ou passando por situações vexatórias. ‘Pimenta no pescoço em francês dos outros, não arde,’ mas faz rir, provoca chacotas nos idiomas os mais diversos. Seria interessante se essas pessoas que zombam, que tiram sarro, passassem por uma situação como a infeliz criatura de Porto Alegre. A cena chamou a atenção de algumas pessoas, mas a política de medo daqueles que se colocaram no lugar de Bruno Stracke, também foi tema de conversas e ‘mimimis’ nas redes. ‘Não há nada mais aterrorizante do que isso,’ afirmou um dos internautas. Outro argumentou: ‘Eu acho que morreria.’ Um terceiro saiu do armário e bateu o pé: ‘Não estou brincando,’ Entre mortos e feridos, a psicóloga da healthtech Vibe Saúde, Angélica Lisboa Rodrigues explica que o medo é uma resposta natural aos seres humanos e pode servir de proteção, mas lembra que é importante diferenciar o ‘medo comum’ de baratas do ‘medo intenso’ do inseto que é chamado pela ciência (como está posto no texto de Aparecido), ou seja de ‘catsaridafobia.’ Mais esquisito, nessa história toda, é quando a barata não foge, prevarica, tira ‘sarro’ da cara de quem a persegue tentando matá-la. Dias passados, uma barata entrou em minha casa quando eu chegava da rua. Usava toga, a desmiolada. Fui para cima dela com uma latinha de inseticida e a infeliz ainda me sacaneou dizendo que aquele ‘produtinho de supermercado,’ não daria conta dela, pelo contrário, a deixaria mais esperta e mais arisca para continuar importunando.’’ Capaz! Fico imaginando Kafka na pele do seu personagem Gregor, e seu desejo ‘tri legal’ de deixar um emprego chato que ele odiava para trás. Gregor virou uma barata. Dessas aterrorizantes que nos atormentam. Seria interessante se, de repente, a alta cúpula (cu pula??!!) de Brasília da noite para o dia se transformasse, sem exceção, em um amontoado de baratas. Baratas cascudas, feias, chatas, pegajosas. Como ficariam as baratas que infestam as casas parlamentares, os palácios suntuosos, os ministérios... Imaginem uma barata intransigente de posse de uma caneta despirocada escrevendo esferograficamente -, melhor dito -, dando canetadas? ‘Vou mandar essa desgraçada dessa barata para a Papuda. Sem inquérito.’ Será que algumas baratas tidas como ‘espertas,’ ousariam pegar uma piroga e tentar fugir para os quintos, usando o pitoresco Lago Paranoá? Qualquer dia, prometo que farei um texto sobre esse assunto.
    Carina Bratt
    Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro

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  2. Irmão gostei muito do texto e ri bastante.
    Imaginei eu na cena. Kkkkk
    Luzia Aparecida Rinaldi de Souza

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