É lamentável que a discussão sobre a Reforma Tributária aconteça num instante em que o Congresso dê a seus próprios interesses mais importância do que dá aos da sociedade
Nuno Vasconcellos
Se existe algo que não falta,
ou pelo menos não deveria faltar, na agenda dos deputados e senadores
brasileiros são assuntos sérios para tratar. Na semana passada, por exemplo, o
presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), acatando um pedido que mais
pareceu uma ordem vinda do Palácio do Planalto, resolveu deixar para depois a
votação pelo plenário dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a
pontos de dispositivos legais aprovados pelo Legislativo nas últimas semanas.
Definir a pauta de votações é
prerrogativa da Mesa Diretora e a última palavra a respeito sempre é a do
presidente. O que está em discussão, portanto, não é a autoridade de Pacheco
para tomar essa decisão, mas o significado do gesto e seus efeitos sobre a
imagem do parlamento. Este foi o terceiro adiamento da votação dos vetos e a
questão, na melhor das hipóteses, só será enfrentada depois da segunda semana
de maio. Afinal, na quarta-feira, 1º de maio, será o Dia do Trabalhador e,
quando há feriado no meio da semana, Suas Excelências resolvem não dar
expediente em Brasília...
A desculpa para mais essa
postergação foi a falta de acordo entre a oposição e o governo em torno de
matérias que acabaram de ser debatidas e votadas. Ou seja, o prosseguimento do
debate sobre algo que já estava decidido. O mais provável, portanto, é que, se
tivessem sido apreciados pelo plenário, os vetos de Lula teriam sido derrubados
e a decisão soberana que o Congresso tomou dias atrás a respeito da, por
exemplo, saidinha temporária de presos em alguns feriados teria que ser
respeitada. O que se pergunta diante disso é: que tipo de acordo ou que novos
argumentos justificariam, em tão pouco tempo, uma mudança de posição dos
parlamentares em torno de temas sobre os quais demonstravam tanta convicção
semanas atrás?
O que salta aos olhos de qualquer um é que a intenção de Pacheco, depois de receber em sua residência a visita dos ministros Rui Costa, da Casa Civil, e Alexandre Padilha, de Assuntos Institucionais, além dos líderes do governo no Senado, foi apenas dar mais tempo para que o Executivo libere o dinheiro de emendas parlamentares que poderão estimular alguns deputados e senadores a refletir melhor sobre suas posições... Só na semana passada, foram empenhados mais de R$ 2,4 bilhões para pagamentos dessas emendas, além da dinheirama que já vinha havia sido liberada desde o início do mês.
LEIS ESPECÍFICAS — Os
vetos que estão para ser avaliados dizem respeito a temas que o Executivo não
teve força política nem capacidade de articulação para aprovar no devido tempo.
E que, agora, voltarão a plenário para uma última avaliação. Eles se referem a
assuntos importantes e deveriam consumir boa parte das atenções dos
parlamentares. Isso, naturalmente, se não houvesse outras questões tão ou até
mais importantes para ser tratadas. Uma delas, certamente a principal entre
todas, diz respeito à regulamentação da Reforma Tributária, que propõe uma das
mudanças mais esperadas pelos brasileiros nos últimos anos.
Na semana passada o relatório
com as medidas sobre o assunto chegou finalmente ao Congresso. Trata-se de um
calhamaço com mais de 350 páginas e nada menos que 500 artigos — que o
presidente da Câmara, Arthur Lira, prometeu levar à votação antes do recesso
parlamentar de julho. Se isso não acontecer — o que é muito provável — é que a
pauta fique para ser decidida só depois das eleições municipais deste ano...
Afinal, como o próprio Lira
comentou ao cobrar dos Senadores mais celeridade na avaliação dos vetos
presidenciais, “neste ano teremos dois 31 de dezembro”. O que ele quis dizer
com isso? Para efeito de votações de pautas importantes, o ano parlamentar se
encerra com o recesso parlamentar do meio do ano. O segundo semestre será
totalmente dedicado às eleições municipais e, em função delas, os parlamentares
que foram eleitos para discutir os temas de interesse nacional terão todas as
suas atenções voltadas para suas conveniências paroquiais.
Na previsão do próprio
governo, as discussões e deliberações em torno da regulamentação iniciadas
agora deverão se estender até o final de 2025, com a transição gradativa para o
novo sistema se estendendo até 2026. Oito das trezentas e tantas páginas do texto
entregue a Lira e, depois, a Pacheco contêm uma lista das leis e dispositivos
que serão revogados pelo novo dispositivo — que promete simplificar o atual
sistema tributário. Há, porém, o risco de que a promessa de simplificação, no
final de tudo, acabe se reduzindo a apenas isso: uma promessa.
O próprio texto da reforma
prevê a elaboração de 73 leis sobre pontos específicos do novo sistema de
impostos sobre o consumo — e este, no final das contas, pode ser o ponto de
partida para que a confusão tributária que se pretende eliminar acabe sobrevivendo
sob nova roupagem. Se isso acontecer, o contribuinte que sonhava em ter menos
contrariedades para se entender com o fisco corre o risco de, como acontece nos
dias de hoje, continuar refém dos fiscais das coletorias municipais, estaduais
e federal para cumprir suas obrigações.
O ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, que na quarta-feira passada visitou Congresso Nacional para
entregar o projeto nas mãos do presidente da Câmara, Arthur Lira, demonstra
otimismo. “Há quem projete o impacto no PIB entre 10% e 20%”, disse, referindo-se
aos possíveis efeitos positivos das mudanças sobre a economia. Para que isso
venha a acontecer, no entanto, o caminho será longo.
CRISE DE CREDIBILIDADE
— Para ser eficaz, o novo sistema tributário não pode deixar o governo à mingua
de recursos. Da mesma forma, não pode ter um peso excessivo nas costas da
população. O equilíbrio, porém, só será alcançado se o Congresso se propuser a
avaliar com profundidade e clareza os impactos do novo sistema tributário sobre
a vida da sociedade. Os parlamentares, no entanto, parecem renunciar à
obrigação de representantes do povo e aceitam reduzir todas as discussões às
necessidades de um governo gastador, que se recusa a cortar um centavo em suas
despesas correntes e, com isso, aliviar a carga que pesa sobre o contribuinte.
Sem receio de ser considerado
ingênuo ao falar de um ponto de vista que volta e meia é mencionado neste
espaço, convém insistir: os interesses da sociedade deveriam ser tratados com
prioridade em momentos como essa. Afinal, é ela quem paga a conta. É ela que,
sem desfrutar dos benefícios oferecidos aos cidadãos de outros países que têm
uma carga tributária pesada como a brasileira, entrega parte substancial de
seus ganhos para o governo sustentar a máquina estatal. Uma máquina que, entra
ano e sai ano, se mostra sempre ineficiente, pesadona, onerosa e cada vez mais
voltada para suas próprias necessidades do que para as da população que deveria
atender.
Diante da importância do tema,
de seus efeitos sobre o PIB e de seu impacto sobre a sociedade, portanto, as
atenções de cada um dos 513 deputados e 81 senadores do país deveriam estar
100% concentrados no esclarecimento dos temas ainda obscuros do projeto. Entre
eles, o mais importante é, sem dúvida, a definição da alíquota dos tributos que
substituirão o IPI, o ICMS, o ISS, o PIS e a COFINS.
O secretário especial para
Reforma Tributária do ministério da Fazenda, Bernard Appy, imagina uma alíquota
somada de mais ou menos 26,5% para os dois novos impostos que entrarão em cena
no lugar desses cinco. São eles o Imposto Sobre Bens e Consumo (IBS) e a
Contribuição Sobre Bens e Consumo (CBS). Não está descartada, porém, a hipótese
de que a alíquota venha a ser bem mais pesada. Isso dependerá, antes de mais
nada, da capacidade que determinadas categorias e de setores mais influentes de
conquistar a simpatia dos parlamentares e conquistar isenções que serão negadas
à maioria da população.
DESLIZES PESSOAIS — Um
aspecto lamentável em meio a tudo isso é que a discussão de um tema tão
sensível como esse venha sendo travada num momento em que o Congresso vive
aquela que, certamente, é sua maior crise de credibilidade dos últimos anos.
Com as atenções dos deputados e senadores cada vez mais concentradas nas
emendas parlamentares e em outras formas de acesso ao dinheiro do povo, a
impressão que se tem é a de que os atuais deputados e senadores têm exagerado
na hora de colocar seus próprios interesses à frente dos daqueles que lhes
deram o mandato. Ou seja, o eleitor.
Parece — e sempre é bom
insistir nessa tecla — que a corporação dos políticos triunfou e que a
sociedade passou a ocupar os últimos lugares na escala de prioridades das duas
Casas. Não há semana que passe sem que venha à tona algum episódio que
contribua para aumentar a descrença e o desânimo dos eleitores diante do Poder
Legislativo que é, e deveria traduzir isso em suas ações, o principal esteio da
democracia.
Sim! O tom é de desânimo. E
esse desânimo a respeito de uma instituição que — não faz tempo assim — estava
entre as mais admiradas pelo povo brasileiro tem uma razão de existir. Ele
decorre, além do desinteresse demonstrado pelos parlamentares diante das
medidas mais importantes. Decorre, também, da tendência que eles demonstram de
condicionar a aprovação de qualquer medida à liberação do dinheiro das emendas.
Decorre, finalmente, de algumas práticas individuais indecorosas (no sentido de
que ferem o decoro parlamentar) que, por não serem condenadas com o devido
rigor pela maioria, acabam enxovalhando a imagem de todo o Congresso Nacional.
Exemplos disso não faltam.
Apenas na semana passada, mais precisamente na terça-feira, a Comissão de Ética
da Câmara ouviu o deputado André Janones (Avante-MG) sobre a prática de
“rachadinha”. O processo contra ele foi aberto em dezembro do ano passado e,
desde então, estava parado na Casa, à espera do esquecimento.
Conforme está registrado com
clareza nas gravações que comprovam o ato ilícito, Sua Excelência pretendia
“recompor o patrimônio” que havia sido “dilapidado” por dívidas com a campanha
eleitoral de 2016. Em nome disso, ele determinou que os funcionários de seu
gabinete lhe entregassem parte de seus salários.
O deputado disse em sua defesa
que os funcionários de fato lhe entregavam parte de seus salários. Tudo, porém,
não passava de “contribuições espontâneas” feitas por eles. Ele se queixou,
ainda, de ser vítima de “perseguição política” (só não conseguiu identificar
quem o persegue). No final, ele pediu o arquivamento do caso. Janones é apenas
um dos parlamentares que, pelo silêncio dos colegas diante de seus deslizes
pessoais, acabam enxovalhando a imagem de todo o Congresso perante a sociedade.
INSISTÊNCIA CONSTRANGEDORA
— Há outros. A imagem negativa da casa foi, recentemente, reforçada pelas cenas
de selvageria e prepotência protagonizadas pelo deputado Glauber Braga (PSOL),
do Rio de Janeiro. No dia 16 de abril, o nobre parlamentar apelou para chutes e
bofetões para expulsar um cidadão da Câmara dos Deputados. Os exemplos não
param por aí. Outro fato recente é o que envolve o deputado Chiquinho Brazão
(sem partido), também do Rio, preso sob suspeita de estar implicado no
assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018...
Existe uma discussão em torno
da legalidade da situação de Brazão. No entendimento de alguns juristas, ele
não deveria estar preso — uma vez que não houve flagrante que justificasse a
medida. Caso a participação do deputado na morte de Marielle venha a ser
comprovada, ele deve pagar pelo crime, na forma e com o rigor da lei. Antecipar
a pena sem a comprovação da culpa, no entanto, parece um exagero que a Câmara
não se mostra disposta a decidir sobre isso. Quando mais tempo os parlamentares
levarem para tomar uma decisão, mais tempo o assunto permanecerá vivo e
aumentará os danos causados à imagem do Parlamento pela omissão de seus
integrantes.
Os problemas não se resumem à
Câmara. Há fatos de outra natureza que vêm sendo tratados pelo Senado e que,
pelos efeitos negativos que causam, também causam danos à imagem do Congresso.
Um deles é a insistência constrangedora com que presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (MDB-MG), tem defendido a volta dos aumentos salariais automáticos, de
5% a cada cinco anos, para juízes e promotores.
Outro, que já foi citado
várias vezes neste espaço, é a mudança de postura de deputados e senadores que
foram escolhidos pelos eleitores em função das ideias que defenderam na
campanha e mudam de lado depois que assumiram seus mandatos. É espantosa a quantidade
de parlamentares que buscaram votos entre cidadãos de ideias opostas às do PT
e, depois de eleitos, descobriram nas promessas do atual governo qualidades que
não enxergavam quando faziam críticas pesadas ao então candidato Luiz Inácio
Lula da Silva para conquistar a simpatia do eleitor...
“FIRMEZA REVOLUCIONÁRIA”
— À primeira vista, não existe a menor relação entre esses casos. A
“rachadinha” de Janones parece não ter qualquer relação com a acusação que pesa
sobre Brazão que, por sua vez, nem passa perto dos argumentos sem pé nem cabeça
que Pacheco usa para defender os aumentos automáticos aos juízes e promotores.
Cada um desses episódios tem,
de fato, sua própria motivação e gera consequências específicas demais para que
todos sejam colocados na mesma cesta. Há um ponto, porém, para o qual todos
convergem: nunca os parlamentares se mostraram tão representantes de si mesmos
como tem sido nesses episódios recentes. É o caso, por exemplo, do
esquentadinho do PSOL, Glauber Braga — para quem o Congresso parece existir
apenas para abrigar os interesses da extrema esquerda.
Braga justificou a violência e
a covardia que praticou com o argumento de que o agredido Gabriel Costenaro,
que é militante do Movimento Brasil Livre, é um “conhecido provocador do PSOL”.
Chega a ser risível: os integrantes do PSOL não perdem uma única oportunidade
de ofender os adversários. Abusam do direito de chamar de nazista ou de
fascista qualquer um que ouse discordar de suas ideias. Acham-se, como Braga se
achou, no direito de reagir com violência — e sob proteção de integrantes da
chamada “Polícia Legislativa” — diante de alguém que, até prova em contrário,
apenas demonstrou coragem suficiente para devolver as críticas que recebe dele.
Na confusão que se seguiu à
expulsão de um cidadão brasileiro do Congresso Nacional, ele ainda foi a uma
delegacia da “Polícia Legislativa” e lá agrediu o deputado Kim Kataguiri
(União-SP). Essa não foi a primeira confusão em que Braga se envolveu e o
processo aberto contra ele a pedido do Partido Novo, e aceito pela Comissão de
Ética da Câmara na quarta-feira da semana passada não foi a única tentativa de
abreviar o seu mandato. A questão é que ele sempre encontra companheiros
dispostos a defendê-lo por considerar suas ações violentas como demonstrações
de firmeza revolucionária por parte de um militante de um partido que tem por
prática defender atentados terroristas pelo mundo afora.
O Congresso precisa de apoio e
merece todo o respeito da sociedade. Mas seus integrantes precisam compreender
que, se eles mesmos não se derem ao respeito, não merecerão o respeito da
sociedade. Tomara que os eleitores, em 2026, avalie a conduta dos políticos que
colocam seus próprios interesses adiante das necessidades da sociedade e negue
seu voto a quem não se comportar com a dignidade que se espera de um integrante
do Poder Legislativo.
Título e Texto: Nuno
Vasconcellos, O Dia, 28-4-2024
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