terça-feira, 16 de abril de 2024

[Aparecido rasga o verbo] O menino e o peso medonho do silêncio

Aparecido Raimundo de Souza

JOÃO EDUARDO era um menino de oito anos e tinha um mundo enorme a seus pés. Apesar disso, o lugarejo onde morava com a sua mãe e com a avó se fazia ofuscado na vastidão de um bairro   sinistramente barulhento. Em meio a esse caos urbano, apesar do priminho Heitor estar sempre com ele, João Eduardo se sentia distante, apartado, divorciado de algo que não sabia exatamente explicar o quê.

Parecia, na sua cabecinha em formação, como uma ilha de solidão no meio de uma massa de água procelosa, onde um ponto silencioso nesse punhado esquecido de terra se quedava em um outro pélago de ruídos. Para os que passavam apressados, cruzando a rua em frente ao portão da casa, ele se via apenas como uma criança indefesa e amargurada. Por dentro, carregava um orbe paralelo repletado de pensamentos e sentimentos.

Por conta, acreditava piamente estar refugado e largado. Não no sentido físico, isso, jamais. Tinha um teto sobre a sua cabeça para se abrigar da chuva, uma boa cama para dormir, comia em uma mesa simples, mas abundante, além dos amigos que vinham brincar com ele na pracinha em frente. Bastava escancarar o portão e a algazarra se fazia impertinente e serelepe. Contudo, num sentido mais profundo, se sentia ocioso e rejeitado pelos regozijos que pareciam distantes.

Igualmente pelas estrelas rutilantes que não podia alcançar, e, nas noites de lua, o desejo interrompido de querer pegá-la com as mãos. Um outro fato que também se fazia impossível. As histórias que ouvia de espaçonaves que cortavam o infinito. De igual modo, nada nem ninguém parava para lhe contar com maiores detalhes o que de fato seria verdadeiro ou o que não passava de meras invencionices bizarras.

No mais, cada dia se condensava numa repetição maçante do anterior: escola, casa, deveres, pelada com os amigos, desenhos na televisão, brigas e gritos com a avó, desrespeito e pouco caso com a mãe. Sem falar no silêncio. A mudez taciturna, na maioria das vezes se transformava em seu companheiro constante, tão profundo e chato que o eco de suas próprias palavras cheias de dúvidas se fazia ouvir retumbando pelas paredes da sala e dos quartos. 

João Eduardo conversava com ele. Ria diante de um “atormentador.” Contava segredos e sigilos para um personagem invisível, porém, o mutismo reinante do espelho da penteadeira do quarto de seus pais, apenas se limitava a refletir palidamente seu semblante numa espécie de fotografia em preto e branco, destoada das cores vivas e alegres, ou pior, de algo insólito que ao menos trouxesse para seus receios uma pontinha que fosse de felicidade.

Sem falar que esse danado nebuloso e algaraviado somente ouvia, nunca o respondia. Entretanto, um dia, algo extraordinário aconteceu. João Eduardo encontrou jogado no quintal um livro que seu avô (o avô Licido) trouxera para que lesse e se apegasse às boas leituras. O exemplar, por estar atirado às intempéries dos refugos, se fizera velho e empoeirado. Ao abri-lo, como se uma varinha de condão o trouxesse de volta à vida, as palavras amarelentas saltaram à alegria de suas extravagâncias e devaneios –, não só isso –, as frases dançaram diante de seus olhos e as figuras “cartunisadas” do desenhista bailaram grandiloquentes e altissonantes.

Ele leu absorto e concentrado sobre heróis e aventuras. Se encantou com assuntos sobre amizade e coragem. Pela primeira vez, a afrisia foi totalmente preenchida com as músicas envolventes das fábulas e narrativas. João Eduardo percebeu que não estava isolado nem desamparado. Tampouco recluso. Pelo contrário, se via cercado por astros e trilhas, veredas e carreiros esperando para serem explorados.

Num repente vertiginoso, personagens fantásticos se tornaram seus amigos e ele, alegre e saltitante, seguiu em frente. Partiu em busca de novas peripécias que o aguardavam em cada página virada. Sem mais delongas, entendeu que o velho livro se transformara numa chave e ele havia encontrado a porta oculta, e trancada para escapar da esquisita ilha da solidão. Com o tempo, agora correndo mais apresado, João Eduardo se deu conta que o abandono titânico que achava sentir, se fazia apenas num estado de espírito vago.

Aliás, o pequeno, até então, se imaginava tolhido por uma substância não corpórea, oca e apocalíptica. Díssona e ambígua. A companhia que lhe viera visitar através do velho opúsculo achado ao acaso, o fez vislumbrar novas metas dentro de um horizonte pintalgado. O melhor de tudo. Se abraçou numa esfera luminosa que o transportou para as aventuras mais diversas e subitâneas. Desde esse inopinado, João Eduardo nunca mais voltou a se sentir sozinho. Sabia que, sempre que quisesse, poderia mergulhar de cabeça nas páginas de um outro livro.

Lembrou, mesmo estalo perceptivo, que detinha o arbítrio de ligar para o pai de sua mãe, o (vovô Licido) e que em alguma coisa boa para ler ele certamente traria, e, como num passe de mágica, encontraria um porvir inteiro, e mais outro, e mais outro, à sua espera. Descobriu que não estava à esmo, ao deus-dará, jogado às traças, sem rumo ou direção. Pelo contrário, se fazia rodeado por infinitistas companhias: as belas e cativantes histórias que o mundo inteiro guardava para lhe contar.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 16-4-2024

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