domingo, 14 de abril de 2024

[As danações de Carina] Súbita tempestade

Carina Bratt


A PEQUENA E PACATA São Francisco do Morro Alto não ia além de uma cidadezinha que vivia sob um céu sempre azul. Nas ruas sem asfalto, na praça com os bancos quebrados, um coreto que nunca foi usado, as crianças brincavam sem preocupações de carros e ônibus transitando tresloucadamente. A maioria da população. Idosos. Longevos que contavam histórias de dias ensolarados, que nunca mudavam, nem para melhor, nem para pior.


Por volta das treze horas, o horizonte começou a se vestir de cinza. Os primeiros ventos chegaram como sussurros carregando folhas e segredos, derrubando as roupas dos varais. No mesmo pé, levantado as saias das senhorinhas recatadas e os vestidos curtos das moças. As pessoas pararam no meio da praça e olharam para o céu com uma curiosidade que há muito não sentiam.

— Será chuva? – Disse um.
— E das ‘brabas’ –, observou outro.
— Vou me esconder em casa e ‘tramelar’ as janelas
— Eu também irei fazer o mesmo...
Esse ‘será chuva’ de repente virou uma interrogação estonteante na boca de todos. Os que se achavam sentados nos pedaços de bancos da praça correram para seus lares a fim de se resguardarem.

Então ela chegou. A tempestade. Aportou com tudo, furiosa, de mala e cuia. Pintou no pedaço com um rugido selvagem que parecia vir do próprio seio da terra. As nuvens se abriram (ou melhor, se mandaram) e o aguaceiro caiu pesado e denso como uma cortina escura onde não se enxergava um palmo diante do nariz. Os ‘birosqueiros’ fecharam seus espaços, os ambulantes na estação rodoviária recolheram seus carrinhos de pipocas e doces, o padre trancou a entrada principal da igreja... até o Mercado Sabiá (‘Não a melhor lugá pra comprá’) encerrou o movimento.

As ruas e vielas antes secas, em questão de minutos deram a impressão de pequenos rios de barros carregando um amontoado de lixos e tranqueiras que as pessoas tinham por costume colocavam em frente às calcadas de suas residências. Um bando de moleques favelados e peraltas (ocupantes de um morro próximo), dançava com os braços abertos, as línguas de fora (outros desciam os calções) para captarem cada gota despencada.

Os idosos, suas bocas sem dentes, sorriam cáries e cavernas desconformes, as bundas acomodadas em suas varandas, obviamente se lembravam dos tempos em que a água representava a benção e a promessa de uma renovação. Para meia dúzia, a barulhenta tempestade não se fazia apenas em derramamento de água. Para os mais católicos, a esperança se reinventava, se beneficiava de uma portentosa e exímia convalescença.

Para os crentes e tementes na Palavra, a vida dava a impressão de promessas e empenhos, perseveranças e porfias. Em verdade, bem ou mal, o temporal lavava o âmago das preocupações. Enchia os poços quase em colapso; trazia o verde desvanecido e obliterado de volta; refazia as terras secas e estorricadas das fazendas e dos sítios em derredor do pacato e decíduo povoado.

Nas palavras do santo padre Maciel, se anunciava a presença de Deus, e melhor, vinha com a indicação de uma aliança da graça divina diretamente ‘Dele,’ e, com ela, a mudança radical. Horas depois, tudo se acalmou. Quando o sol (um pouco anêmico) finalmente voltou a romper as nuvens, deixando o ar fresco e o quadro meio desolador, todavia, abrilhantado e engalanado, a cidade, não se fez mais a mesma de horas antes.

Os moradores (ricos e pobres, os inquilinos das ruas e os bêbados) haviam sentido a tempestade e agora, sabiam e o melhor de tudo, entendiam que até o mais alto azul carecia de nuvens de rostos estranhos e de chuvas com feições severas para se fazer mais próspero e avultado.

A lição que fica para as minhas amigas da ‘Família Cão Que Fuma’ e os demais leitores que tiverem a paciência de lerem meu humilde texto. Tal observação serve para nós todas. A cidadezinha imperturbável e plácida, dormente e sussa, entrelaçada em meio ao nada, longe e distanciada de uma civilização mais abastada, a cada novo dia aprendia a viver sob o sol radioso. Igualmente se coadunava com os acasos não programados, como as tempestades violentas mandadas por ordem do PAI MAIOR. Cada um a seu modo, a galera vivia feliz e em PAZ.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo, 14-4-2024

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