‘O medo é uma escada da qual caímos pelo fato de termos receio de enfrentar a altura na medida em que subimos em direção ao topo.’
Tompson de Panasco – pensador de rua.
NO EDIFÍCIO CHUCRI LOTAIF, na Vinte e Cinco de Março, apto 701, havia até alguns anos atrás, algo estranho e espetaculoso, ou pior, um fato esquisito e chamativo, intrigante e diabólico que chamava a atenção de todos os demais inquilinos que ocupavam aquele andar. Nesse apê, a locatária, dona Berenice, alcunhada como ‘Da Pá Virada,’ tinha, num canto de sua sala, umas prateleiras enormes que ocupavam de um canto a outro da peça. Todas elas, nas quatro bandejas, uma coleção de pequenos vidros exatamente iguais. Não vidros comuns. Recipientes que segundo palavras dela, guardavam coisas consideradas raras. Entre essas iguarias, se destacava no cardápio variado, o ‘Medo.’ Imaginem só, caras amigas. Vocês leram corretamente. Ele mesmo, o ‘Medo.’
Ou melhor explicado, o terror que nos amedronta ao alcance de qualquer
um, numa versão nunca vista. Por assim, o assombramento, a estuporação, a
repugnância poderiam ser vistas e até adquiridas na versão ‘ENGARRAFADA.’ Dona
Berenice, sem tirar nem pôr, beirava os setenta anos. O que tinha de idade,
igualmente escondia à sete chaves, segredos grandiosos, sigilos que fervilhavam
por detrás de seus óculos de lentes grosas numa armação do tempo do Ronca.
Sobre a proteção deles, seus olhos, embora parecessem cansados, ocultavam sete
décadas de segredos. Seus cabelos brancos (que ela nunca cortava) caíam em
cachos tampando os ouvidos. Ela dizia, de boca cheia, conhecia cada medo, cada
ansiedade, cada pesadelo que assombrava os corações das pessoas, em especial dos
moradores daquele prédio, notadamente dos que dividiam o mesmo pavimento.
Um dia, uma moça no albor dos seus dezoito, soube dessa história por uma amiga de trabalho. Extremamente curiosa, decidiu que na próxima folga visitaria esse prédio e a tal senhora ‘meio tantã’ ou completamente ‘maluca.’ Não deu outra. Na folga, Dheylla, se pôs a caminho. Centro de São Paulo, pegou um Uber até onde morava a tal dona Berenice. Em lá chegando, seus olhos enormes e lunáticos, não conseguiram resistir por mais tempo. A tentação de explorar os tais vidros a empurrava para uma aventura. Ao chegar no local indicado pela amiga, tocou a campainha na casa da tal senhora. Assim que a porta lhe fora aberta, ela depois dos cumprimentos, se pôs a examinar os tais vidros. Cada um deles continha uma etiqueta escrita à mão em letras meio destoadas de uma caligrafia perfeita.
Se deparou com vários tipos de medos. Havia o ‘medo de ficar velha
e morrer sozinha;’ o ‘medo de vir à óbito vítima de bala perdida;’ o medo de
altura;’ o ‘medo de não ser feliz;’ de ser ‘pobre a vida toda;’ enfim, a
quantidade de poltronaria se fazia imensa. Cada tremelique estava coberto por
líquidos de cores variadas. A certa altura, suas pernas fremiram só de olhar
para cima. Na sequência, o ‘medo do escuro.’ Esse ficava em um frasco todo preto, com pequenas
estrelas brilhantes flutuando. E o ‘medo de amar,’ se condensava num
líquido vermelho. Lembrava um coração partido totalmente em pranto. Dheylla
perguntou à dona Berenice sobre o propósito desses vidros. Ele sorriu revelando
alguns dentes faltosos e uma fisionomia desfalecida num rosto cheio de rugas em
estado quase terminal:
– O medo, minha filha, é uma parte essencial da nossa vida. Ele nos
protege, nos alerta, nos direciona, nos mostra os dias vindouros, e também nos
leva à loucura. Tanto pode nos aprisionar, como nos libertar de nossas piores
preocupações. Às vezes precisamos enfrentá-lo de peito aberto, de coração em
frangalhos, de olhar marejado de lágrimas. Por derradeiro, às vezes basta
olharmos para dentro desses vidros e entender o que, de fato, nos arrebata o
ar, nos deixa sem fôlego e nos aflige o espírito.’ Dheylla escolheu um vidro aleatoriamente e
apontou o dedo em riste. Esse recipiente se fazia como os demais. Pequeno, como
o que usamos em nossa cozinha para acondicionarmos mantimentos fechados a tampa
de bambu.
Extremamente limpo, se podia ver através dele, uma substância como água
misturada a borra de café. Uma etiqueta sinalizava ‘medo do desconhecido.’
Sem mais demora, a jovem perguntou se poderia comprá-lo e qual seria o preço. A
longeva balançou a cabeça afirmativamente. Dheylla abriu a bolsa, pegou um maço
de notas de vinte reais, contou até chegar no valor que lhe fora passado. Pagou
o preço exigido. Dona Berenice o colocou numa caixinha, embrulhou com certo
cuidado e esmero e o entregou à jovem. Marina partiu em direção ao elevador. Na
rua, empreendeu o caminho de volta para a localidade onde morava. Residia em
Itapevi. Em lá chegando, colocou o vidro na sua mesinha de cabeceira. À noite,
quando a escuridão envolveu seu quarto, ela resolveu, sabe-se lá pensando em
que e o abriu.
O ‘medo do desconhecido’ obviamente, escapou como uma fumaça densa,
envolvendo-a dos pés a cabeça. Nesse momento, sentiu seu coração acelerar, as
mãos suaram e ela toda tremeu convulsivamente. Contudo, aos poucos, algo
incrível aconteceu: o medo tétrico se dissipou. Dheylla percebeu que o
desconhecido não se asseverava assim tão assustador quanto imaginava. Nos dias
seguintes, enfrentou outros pesadelos disfarçados de medos. O ‘medo de falhar
no emprego,’ o ‘medo da solidão, ’ e até mesmo o ‘medo de morrer.’
Cada um deles a ensinou ver pela frente, algo novo, libertando-a de suas
amarras invisíveis. Com o passar dos meses, aprendeu que o medo que a deixava
rés ao chão, não precisava ficar engarrafado.
Ele poderia ser compreendido, enfrentado e até transformado. Dona
Berenice (Quem disse Berenice??!!) nunca mais viu a criatura em seu
apartamento. Entretanto, por experiência, sabia que aquela alma aflita se fazia
liberta. Aquela menina flor em botão estava em algum lugar lá fora, espalhando
coragem por onde passava. Dessa forma sem nexo, para não dizer ‘meio besta,’
termino essa crônica sobre o medo engarrafado. O medo que nós mesmas
aprisionamos num recipiente existente dentro de nosso corpo. Que essa história
sem nexo, minhas amigas da ‘Grande Família Cão que Fuma’, em algum
momento da nossa (e de suas caminhadas), sirva de entendimento para nos
lembraremos que, às vezes, enfrentar de cara limpa os nossos medos e receios, é
a única maneira correta de verdadeiramente vivermos sem sentir o que aprendemos
a temer como um horripilante bicho papão, um endiabrado de sete cabeças. ‘O M E D O.’ Não importa de que forma ele se
mostre ‘Desconhecido.’
Título e Texto: Carina Bratt, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 7-4-2024
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