sexta-feira, 5 de abril de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Era só um buraco na camada de ozônio

Aparecido Raimundo de Souza

NAQUELE MOMENTO, o céu lá no sempiterno não ia além de uma neblina densa e chata –, dessas que parecem esconder segredos cabeludos e distorcer as realidades deixando o que está quieto e calmo numa espécie de alteração desenfreada. Apesar disso, saí e iniciei a minha caminhada de todas as manhãs. De repente, assim do nada, um espanto atarantado me deixou boquiaberto. Me deparei com um relógio grudado em um painel em frente à entrada de um prédio de uns dez andares. Até aquele momento, não me lembro de tê-lo visto. Será que a idade está me deixando pirado, a ponto de ver coisas que não existem? Não importa. O mostrador marcava oito e meia. Lembro que as oito horas em ponto, havia saído de casa. Decidira empreender um passeio, uma caminhada simples objetivando espairecer as ideias. Uma jornada breve, de passos curtos, sem rumo definido. Apenas seguindo os rastros da névoa que se entrelaçavam com meus devaneios e pensamentos meio que conturbados. Apesar do prédio e do relógio, me pus adiante. Me embrenhei sem rumo certo.

Passei por vielas estreitas, onde as casas com grandes janelas de várias cores e formatos me davam a impressão de fundidos umas às outras, como se fossem espelhos gigantescos que refletiam infinitamente imagens de uma centena de parques de diversões. Logo, ruas à frente, árvores sussurravam segredos em línguas estranhas. Pássaros voavam em círculos, assim como se dançassem irmanados numa coreografia invisivelmente inexistente. Foi então que ao cruzar com a igreja e mudar de uma calçada para outra, me deparei com uma porta de madeira antiga na entrada de uma loja onde uma tabuleta indicava, em letras garrafais, a comercialização de “roupas femininas.” Uma entrada a meu entendimento, de cútis carrancuda, me espiou da cabeça aos pés com olhos arregalados e as feições condexas. Esse acesso construído em madeira antiga, se fartava com entalhes intricados que pareciam contar histórias de outros tempos que não os meus. Não havia maçaneta para as mãos. Apenas um espelho em formato de coração embutido, como se alguém o tivesse colocado ali por algum motivo sem uma meta definida.

Pombas! Do lado de fora? – Inquiri com meus botões!  Esquisito, ou melhor, intrigante. Quem teria a maluca ideia de colocar um espelho ao relento e na escadaria de um comércio de roupas íntimas? Estanquei. Ao sofrear os passos, percebi os meus reflexos reproduzidos olhando escancaradamente para mim. Eles me sondavam com butucas de esbugalhos curiosos, como se também quisessem desvendar algum secreto existente em um oculto que eu carregasse invisível. Extremamente abelhudo, sem hesitar em seguir meu plano traçado, empurrei a pesadona e entrei. Do lado de dentro, não havia chão. Apenas um buraco enorme. Como se estimulado por mãos invisíveis, caí nele, ou sei lá, flutuei, não lembro. O tempo, a partir desse passo, e da minha intromissão, foi como se alguém poderoso tivesse desfeito as minhas vontades e tomado conta total dos meus controles. Me vi em um espaço divorciado. Um recinto, ou um mundo insondado e impróprio, meio que cerebrino. Para me deixar mais intrigado, havia um jardim e no meio dele, muitas árvores.

Elas tinham raízes de fogo e os pássaros que voejavam, centelhavam um encantamento inexplicável. Uma fascinação embevecida de luzes as mais variadas cores, brincavam com a claridade do dia mavioso. As flores cantavam canções antigas e os pequenos fios de água corrente lembravam trilhas de estrelas. Assim, do nada, me flagrei parte integrante desse cenário, tipo uma criatura híbrida repletada de sonhos e realidades. Saídos de algum espaço ainda não vislumbrado, encontrei outros viajantes. Seres iguais a mim que também haviam, obviamente, cruzado a porta com o espelho. Após os cumprimentos, conversamos (desconheço como) em línguas duvidosas. Compartilhamos histórias e memórias que não eram nossas. Não havia passado nem futuro, apenas o presente. E esse presente se fazia eterno. À medida que explorávamos esse universo, percebi que o espelho não tinha o condão de apenas ser uma mera passagem. Ele se distendia além e se abria numa metáfora. Como tal, refletia nossos desejos mais profundos, sopesava nossos medos mais obscuros.

De repente, viramos fragmentos de um mesmo sonho dançando na borda do real e do imaginário. Foi magnânimo! Assim, nesse lugar sem tempo –, aprendi, ou melhor –, compreendi que a realidade que nos atravanca os passos, nada mais é que apenas uma ilusão. O surreal, por sua vez, é especificamente o cubículo onde habitamos. O espelho nos mostrou que somos feitos de luzes e sombras, de mistérios e encantos. Quando finalmente voltamos para a saída, imbiquei o nariz para minha casa. Não sei o tempo dos demais. Apenas registei que o meu relógio de pulso marcava oito e meia. Entretanto, o relógio na entrada da porta do prédio de dez andares, não marcava coisa alguma. Novamente dei uma esticada para o espelho e tornei a rever meu reflexo sorrindo. Ele sabia o que eu havia sem querer, descoberto: e o que, de fato, eu harmonizara nessa breve saída do meu habitat natural?  Fácil o entendimento. Em conclusão, aprendi que a vida é uma jornada insana e longa dentro de uma porta com um espelho. Nesse espelho existe um labirinto de outras entradas e lacunas, de desvãos, e águas-furtadas, onde o oculto nos espera para rodopios em formas de danças em seus braços mágicos.

O resto... bem, o resto são apenas corriqueiras intimidações e sobressaltos. Contemplações benfazejas com pequenas rusgas, ou simpáticos dissabores fáceis de serem suportados. Esses contratempos esses infortúnios são brandos. Trazem pitadas de atemorizações e intimidações –, todavia, nenhuma tristeza ou enfermidade, tampouco resquícios de situações que possam nos fazer um mal que não consigamos suportar. Ou seja, em ressumo, nada sério, ou fora de um propósito coerente. Tem um Ser Superior no controle. Nada considerado profundo e penoso que nos desvirtue dos trilhos do “Amor Sublime,” ou nos leve à deriva, à uma loucura descabida –, ou dito de forma mais objetiva: nenhum contratempo que nos desvie da complexidade de estarmos vivos e respirando as boas coisas que nos foram legadas pelo Pai Maior. O Deus piedoso que nos contempla sorrindo lá do mais alto com a sua infinita e perpétua “Graça Celestial.”

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 5-4-2024

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