Aparecido Raimundo de Souza
Passei por
vielas estreitas, onde as casas com grandes janelas de várias cores e formatos
me davam a impressão de fundidos umas às outras, como se fossem espelhos
gigantescos que refletiam infinitamente imagens de uma centena de parques de
diversões. Logo, ruas à frente, árvores sussurravam segredos em línguas
estranhas. Pássaros voavam em círculos, assim como se dançassem irmanados numa
coreografia invisivelmente inexistente. Foi então que ao cruzar com a igreja e
mudar de uma calçada para outra, me deparei com uma porta de madeira antiga na
entrada de uma loja onde uma tabuleta indicava, em letras garrafais, a
comercialização de “roupas femininas.” Uma entrada a meu entendimento, de cútis
carrancuda, me espiou da cabeça aos pés com olhos arregalados e as feições
condexas. Esse acesso construído em madeira antiga, se fartava com entalhes
intricados que pareciam contar histórias de outros tempos que não os meus. Não
havia maçaneta para as mãos. Apenas um espelho em formato de coração embutido,
como se alguém o tivesse colocado ali por algum motivo sem uma meta definida.
Pombas! Do lado de fora? – Inquiri com meus botões! Esquisito, ou melhor, intrigante. Quem teria a maluca ideia de colocar um espelho ao relento e na escadaria de um comércio de roupas íntimas? Estanquei. Ao sofrear os passos, percebi os meus reflexos reproduzidos olhando escancaradamente para mim. Eles me sondavam com butucas de esbugalhos curiosos, como se também quisessem desvendar algum secreto existente em um oculto que eu carregasse invisível. Extremamente abelhudo, sem hesitar em seguir meu plano traçado, empurrei a pesadona e entrei. Do lado de dentro, não havia chão. Apenas um buraco enorme. Como se estimulado por mãos invisíveis, caí nele, ou sei lá, flutuei, não lembro. O tempo, a partir desse passo, e da minha intromissão, foi como se alguém poderoso tivesse desfeito as minhas vontades e tomado conta total dos meus controles. Me vi em um espaço divorciado. Um recinto, ou um mundo insondado e impróprio, meio que cerebrino. Para me deixar mais intrigado, havia um jardim e no meio dele, muitas árvores.
Elas tinham
raízes de fogo e os pássaros que voejavam, centelhavam um encantamento
inexplicável. Uma fascinação embevecida de luzes as mais variadas cores,
brincavam com a claridade do dia mavioso. As flores cantavam canções antigas e
os pequenos fios de água corrente lembravam trilhas de estrelas. Assim, do
nada, me flagrei parte integrante desse cenário, tipo uma criatura híbrida
repletada de sonhos e realidades. Saídos de algum espaço ainda não vislumbrado,
encontrei outros viajantes. Seres iguais a mim que também haviam, obviamente,
cruzado a porta com o espelho. Após os cumprimentos, conversamos (desconheço
como) em línguas duvidosas. Compartilhamos histórias e memórias que não eram
nossas. Não havia passado nem futuro, apenas o presente. E esse presente se
fazia eterno. À medida que explorávamos esse universo, percebi que o espelho
não tinha o condão de apenas ser uma mera passagem. Ele se distendia além e se
abria numa metáfora. Como tal, refletia nossos desejos mais profundos, sopesava
nossos medos mais obscuros.
De repente,
viramos fragmentos de um mesmo sonho dançando na borda do real e do imaginário.
Foi magnânimo! Assim, nesse lugar sem tempo –, aprendi, ou melhor –, compreendi
que a realidade que nos atravanca os passos, nada mais é que apenas uma ilusão.
O surreal, por sua vez, é especificamente o cubículo onde habitamos. O espelho
nos mostrou que somos feitos de luzes e sombras, de mistérios e encantos.
Quando finalmente voltamos para a saída, imbiquei o nariz para minha casa. Não
sei o tempo dos demais. Apenas registei que o meu relógio de pulso marcava oito
e meia. Entretanto, o relógio na entrada da porta do prédio de dez andares, não
marcava coisa alguma. Novamente dei uma esticada para o espelho e tornei a
rever meu reflexo sorrindo. Ele sabia o que eu havia sem querer, descoberto: e
o que, de fato, eu harmonizara nessa breve saída do meu habitat natural? Fácil o entendimento. Em conclusão, aprendi
que a vida é uma jornada insana e longa dentro de uma porta com um espelho.
Nesse espelho existe um labirinto de outras entradas e lacunas, de desvãos, e
águas-furtadas, onde o oculto nos espera para rodopios em formas de danças em
seus braços mágicos.
O resto...
bem, o resto são apenas corriqueiras intimidações e sobressaltos. Contemplações
benfazejas com pequenas rusgas, ou simpáticos dissabores fáceis de serem
suportados. Esses contratempos esses infortúnios são brandos. Trazem pitadas de
atemorizações e intimidações –, todavia, nenhuma tristeza ou enfermidade,
tampouco resquícios de situações que possam nos fazer um mal que não consigamos
suportar. Ou seja, em ressumo, nada sério, ou fora de um propósito coerente.
Tem um Ser Superior no controle. Nada considerado profundo e penoso que nos
desvirtue dos trilhos do “Amor Sublime,” ou nos leve à deriva, à uma loucura
descabida –, ou dito de forma mais objetiva: nenhum contratempo que nos desvie
da complexidade de estarmos vivos e respirando as boas coisas que nos foram
legadas pelo Pai Maior. O Deus piedoso que nos contempla sorrindo lá do mais
alto com a sua infinita e perpétua “Graça Celestial.”
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santa Rita do Passa Quatro,
interior de São Paulo, 5-4-2024
De repente, perdidos no limiar do inferno
Como cicatrizes silenciosas
Desvio de conduta
Tudo o que é mal começado...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-