terça-feira, 2 de abril de 2024

[Aparecido rasga o verbo] De repente, perdidos no limiar do inferno

Aparecido Raimundo de Souza

NA PENUMBRA enervante das celas imundas, o tempo não se faz sem tempo. Ao contrário, se estica sem melindres, como se capengasse em longos fios de angústias as mais irritantes. As paredes nojosas, gastas e impregnadas de histórias silenciadas de outros tantos e não sei quantos janeiros, abraçam os corpos encarcerados e os admoestam como uma doença maligna e incurável. Na ala “Masculina,” homens condenados (muitos deles por juízes que se vendem por trinta moedas, usque delitos não cometidos), são banidos da sociedade escudados em leis improfícuas e mal paridas, sem mencionar o descaso de uma legislação penal antiquada e fodida, sem falar usando o mesmo porrete, nas aberrações de uma cambada de legisladores feitos nas coxas e filhos da puta. Isso mesmo, filhos da Puta. Toda essa galera de incompetentes (por conta dessas disparidades de leis penais manchadas de bostas fedorentas), se vê à espera da morte em câmera lenta. Em nome de punições sem sentido, permitem serem englobados inocentes nas iras dos artigos mais diversos e hediondos.

Na senda “Feminina,” o quadro se faz estorvantemente idêntico. Mulheres jovens e velhas, seguem em igual diapasão. Se fazem envolvas num comum corriqueiro e traiçoeiro. Cada uma desenvolve a sua carga de erros e desesperos, desacertos e angustias.  Vegetam os dias que se alongam como se estivessem sob o comando de uma perpetuidade inacabável. No geral, sem tirar nem pôr, todos os enclausurados compartilham o igual espaço restrito, qual seja; o da degradante atmosfera do agrilhoamento; separados apenas por enormes paredes frias e anojosas; entrelaçadas a muros altos de semblantes fechados; distribuídos por sisudos corredores longos e obumbrados; onde a liberdade não vai além de uma quimera. Apenas uma lembrança aquém, afastada, insulada e terrificantemente inexistente. Mesmo norte, as grades grossas e frias, caladas e atônitas, como sentinelas bárbaras e implacáveis, separam o mundo exterior do interior sombrio e brutesco. Como o “joio do trigo.” Como a “água e o azeite.” Os olhos de pálpebras cansados e aleijados dos detentos e cativos, buscam brechas e rasgões nas malhas e teias dos ferros fundidos, ansiando por um vislumbre de um céu de cores alegres, ou, ao menos, de um sopro benfazejo de uma lufada de ar fresco vindo de fora dessas masmorras.

As sombras densas e apinhadas de uma espécie maligna de doença incurável passam a impressão de guarnecerem o complexo prisional de canto a canto, onde vidas esquecidas ao deus dará se juntam como seus únicos companheiros. Nas celas, a coisa fica ainda um pouco pior. O tempo se mostra inexorável. Se perpetua num paradoxo. De contrapeso, arrasta consigo as horas numa desinquietação preguiçosa, como se tivesse perdido o ânimo e a vontade de avançar e tentar chegar à algum lugar. Cada dia que surge é uma repetição monótona da mesma coisa, do mesmo quadro: refeições insípidas, olhares vazios, moléstias criando novos personagens e a contagem dos minutos que se projetam e se arrastam numa vagarosidade demolida e abodegada. Por falar em minutos, o relógio pendurado na parede que acessa as celas parece zombar dos que ali abstergem pontilhando um clima desesperançado que, em verdade, não pertence a ninguém. As histórias, como crônicas de livros desgastados, seguem idênticas. Se amordaçam nas paredes e umbrais descascados.

Numa das celas, um homem em idade avançada, quase aos noventa, foi condenado por um crime hediondo que não cometeu. Seu coração, quase à beira de um colapso, sussurra a sua inocência aos berros. Ninguém o escuta. Apenas as baratas e uma legião de formigas rastejam pelo chão. Sem falar nos ratos. Do outro lado do paredão, uma jovem mãe, aos vinte e dois, com os olhos fundos de insônia, embala um filho imaginário nos braços, cantando canções de ninar que ele nunca ouvirá. Há um silêncio sepulcral e arrepiante, pesado e degradante. Uma pasmaceira incomensurável que pesa como uma sentença ditada por um juiz algoz. Os uivos das dores e desesperos são abafados pelas paredes, apesar delas ecoarem nas almas sem brilho dos encarcerados como um punhal desferido por fantasmas iracundos. Os cativos se perguntam se algum dia serão libertados. Se verão o mar; se voltarão às ruas e avenidas entupidas de pessoas, ou se sentirão novamente à terra; à grama sob os pés; ou o vento forte acariciando os suores de seus rostos.

O sistema prisional, como uma máquina implacável, gira as suas engrenagens sem piedade. O sistema prisional é uma decadência. Os carcereiros, os rostos endurecidos pela rotina, cumprem seus deveres sem questionamentos. São, ratos de esgoto. Fazem parte de uma gangue de paus mandados. Entre as grades, a humanidade que nela vegeta, persiste. Cartas escritas à luz fraca das lâmpadas, olhares furtivos trocados nos corredores, gestos de solidariedade se propagam, e, às vezes, transcendem as divisões. Mesmo destino, entre mortos e feridos, no limiar entre a Esperança e o Desespero, entre os coléricos e os sem Deus no Coração, uma massa enorme de cafajestes e manipuladores enfrentam o “cada dia.” O tempo, mesmo o aprisionado, segue tecendo as suas teias invisíveis, unindo destinos tão insignificantes quanto distintos. Entre mortos e feridos, queira o Pai Maior, talvez, em algum momento, conceda que uma fresta de luz penetre nas celas, lembrando os que ali esperam no Senhor, que a liberdade, por mais distante que pareça, ainda possa ser EFETIVAMENTE POSSÍVEL.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo, 2-4-2024

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