domingo, 19 de maio de 2024

[As danações de Carina] Ele

Carina Bratt

‘Ele é um conjunto de todos nós, vagando num diferenciado que não vemos.’
Tompson de Panasco

ELE CAMINHA solitário. Solitário ele caminha pelas ruas, praças e avenidas de memórias. Não só de memórias suas, de todos os que um dia fizeram parte da sua vida. Seus passos ecoam no corredor do tempo. Cada pegada da história, cada olhar, lhe aviva um novo pensamento. Às vezes um pensamento ruim; outras um gostoso de ser lembrado. Essa lembrança fútil, quando perversa, ele procurar esquecer, apagar, desprezar, deixar de lado.

Quando boa, ele estanca os passos, olha ao derredor, sorri um sorriso de rosto cheio e encantador, e, minutos depois, recomeça seu caminhar. Caminhar de trajetória longa e incerta. Sempre! Cada nova hora no relógio da vida, um lugar diferente. Uma cidadezinha humilde, outra abastada. Algumas sem asfaltos. A maioria de terra batida e casas empobrecidas. Ele não tem nome, nem idade. Não tem carteira de identidade, nem título de eleitor.

Tampouco CPF, carteira de trabalho ou um trabalho fixo para ganhar uns trocados. Ele é feliz. Não tem partido, nem candidato. Aliás, ele é o candidato único do seu partido. O partido do Nada. Em poucas ocasiões, o partido do Tudo. Ele não tem coisa alguma que o identifique como um ser humano normal. É o viajante dos sonhos, notadamente dos sonhos adormecidos e esquecidos.

Carrega o mundo em seus ombros largos e fortes. Divide consigo mesmo, a solidão, a tristeza, o descaso... noutras; a felicidade; o sorriso da ventura; do bem querer; a alegria de poder ser livre; sem carecer de estar preso às pessoas. As pessoas, para ele, são seres construídos de barro podre, de vínculos de desonestidades as mais severas e perversas. Ele vê em cada criatura (que de quando em vez cruza com a sua passagem), um desafio fácil de ser superado, mas que a cegueira não deixa perceber o fio tênue da essência.

Talvez esses seres não vejam coisa alguma, em face do coração estar amargurado, ou sabe-se lá, cheio das mais intrincadas ambições e propósitos considerados infames. Ele é um andarilho abobalhado, meio adoentado. Sofre de malefícios que ele mesmo cria. Incômodos que, logo em seguida, afasta para longe do seu cotidiano. Ele é um herói. Um herói de si mesmo. Um desbravador de vias e estradas não percorridas.

Nas encruzilhadas, não se mostra amargurado. Jamais! Ele, que vê o amanhecer como promessa e o entardecer como uma doce conquista, sempre como ‘uma doce conquista,’ percebe que a cada novo dia passado e vencido, é uma tela em branco a ser pintado. Um segredo a ser desvendado. Nesses momentos, para, dá um tempo. Descansa. Reflete. Come alguma coisa que achou pelo chão ou lhe foi doado. Noutras oportunidades, desenha na sua imaginação a sua jornada vindoura usando as cores mais vibrantes e otimistas.

Agarrado de unhas e dentes na sua simplicidade, sempre encontra o essencial. Na complexidade desse essencial, desvenda os mistérios que o cercam. Ele não é herói, nem figura saída das histórias mitológicas. É um humano, real, um ser imperfeito, todavia, sério. Ele sorri com os olhos e fala com o que lhe vem do mais profundo da alma. Ele é um pobre que chora sem medo; sem mágoas; conhece a sua força interior.

Não teme o agora, nem o futuro, nem o daqui a pouco. Oxalá, está se lixando para a escuridão. Os segredos desse ser vagabundo e solitário, desprezível e asqueroso, degradante e inqualificável que ninguém quer ver por perto, são três: a calma, a serenidade e a paz de espírito. Neles, pois, a calma, a serenidade e a paz de espírito nunca se escasseiam. Essa trilogia única, igualmente reflete e não só reflete, está presente, viva e pulsante, em cada um de nós. Entretanto, nós não nos damos conta. Somos tapados.

Em oposto, ele enxerga as três partes como se olhasse para um espelho. Ele tem, no âmago, um mosaico grandioso de emoções e experiências. Resumindo: ele é você, ele sou eu, ele é meu amigo ao lado... somos todos, no fundo, à procura de iguais coisas que ele, ou como ele, irmanados no mesmo desejo, queremos possuir. Há um, porém, que diferencia ‘tudo de todos.’ Notadamente, nos diferencia d’ele. Os nossos desejos, às vezes vão para o ralo. Os objetivos dele, prevalecem sempre. Colocam as suas metas nos trilhos, em direção a um NOVO E RECONFORTANTE AMANHÃ.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 19-5-2024

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