Aparecido Raimundo de Souza
O DIA AMANHECEU ensolarado quando o doutor Avarício Pintassilgo, um homem de setenta e dois anos, os cabelos ralos e esbranquiçados, os olhos radiosos e vivazes, decidiu tomar seu café matinal. Ele residia na Sá Ferreira, número 59, esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Edifício Santa Luíza, ou mais precisamente no prédio onde o cantor Roberto Carlos morava nos idos da Jovem Guarda e caminhava a pé até a extinta TV Rio, colada nas barbas do forte Copacabana.
Havia uma cafeteria na Galeria Alasca em frente a 13º Delegacia de Polícia, quase as barbas da Rua Souza Lima. Sempre que dava os ares da graça, o velhote escolhia a mesma mesa próxima à entrada, de onde podia observar os transeuntes que cruzavam cortando caminho por dentro do corredor interno da galeria em direção à Avenida Atlântica. Foi aí que ele viu pela primeira vez a garota em toda a formosura que Deus lhe concedeu. A radiosa não deveria ter mais que vinte e poucos anos.
A encantada tinha os cabelos vermelhos que caiam até o final das costas, os olhos vivazes e curiosos sem falar nos dentes brancos e perfeitos. Ela se sentou numa mesa quase ao lado dele, folheando um Saramago. A partir da chegada dessa espetaculosa, o doutor Avarício não conseguiu mais desviar o olhar. A fofura parecia tão viva e transparente, tão cheia de energia e vida em abundância que dava gosto encarar a sua realeza, sem falar nos outros atributos que completavam todo o resto de suas formas atraentes e pecaminosas.
Velho na idade, contudo, e perito na arte de conquistar o belo oposto, de repente se viu no mato sem cachorro. Impotente. Não sabia como abordá-la. A diferença de idade entre eles, obviamente se fazia gritante, e, evidente, algo além e mais forte que a de sua coragem o impelia de puxar conversa visando conhecê-la melhor. Pensou, repensou com seus botões, contou de um a cem, até que o espírito da aventura falou mais alto. Escapando de uma zona que até então considerava cinzenta, não se fez de rogado. Se blindou numa couraça ousada e valente, intrépida e animosa e se sentindo revestido por inteiro numa ânsia atrevida e, com um sorriso trêmulo, se levantou. Sem mais delongas, se dirigiu a ela e indagou:
— O livro que a senhorita está lendo é interessante?
A inimitável olhou para ele, meio que atônita e surpresa. Não esperava que um homem mais velho se aproximasse. O sorriso gentil que emanava do rosto do longevo imediatamente a tranquilizou:
— Fenomenal e viciante. É um clássico — respondeu ela devolvendo, igualmente, um contentamento jubiloso. — “Tratado sobre a cegueira” do português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1996.
— E o senhor, também é chegado em leitura?
— Com toda certeza. Ontem mesmo acabei de ler Veríssimo, e o “Sexo dos Anjos.” Por favor, senhorita, esqueça o senhor. Prefiro você...
Ela o convidou a se sentar a seu lado, observando:
— Por que não volta à sua mesa e pega tudo o que está sobre ela e carrega para cá?
Assim dessa forma meio insossa, começou a conversa. Falaram de tudo um pouco. De sonhos, do tempo que voava inexorável como folhas ao vento. Adentraram nas vulgaridades do dia a dia. A certa altura, o doutor Avarício contou também um pouco da sua história.
Discorreu momentos da sua juventude, pontuou as mulheres que passaram pela sua vida. Enumerou os filhos que arranjou enquanto a garota se abria, logo depois, compartilhando igualmente a sua vida, e, com ela, os seus planos para o futuro. Temia o preconceito mas aplaudia a coragem. Quando os amigos mais chegados do doutor Avarício souberam desses encontros, num primeiro momento não entenderam. Todos, sem exceção, balançaram a cabeça, dizendo ceticamente que ele estava louco. Como um homem com mais de setenta anos poderia se apaixonar por uma ninfeta mal saída das fraldas?
Os mais familiarizados não deixavam por menos:
— Se você ficar com ela –, observou um deles aos gargalhos –, tão certos quantos dois e dois são quatro, a apetitosa pulará de pernas abertas com a “piriquita” em brasa em todo o seu dinheiro e lhe deixará a ver navios...”
O que um outro acrescentou, sem maiores melindres:
— Sem contar nos chifres que enfeitarão majestosamente a sua cabeça de fios ralos.
O doutor Avarício não se importava. Ele sentia que havia encontrado algo diferenciado dentro de um perfil especial. A guria também enfrentou resistência acirrada quando contou à sua mãe dos vários encontros acontecidos. A matriarca advertiu sobre os perigos de se envolver com alguém tão diferente. Sem falar na idade:
— Ele é mais velho quarenta e tantos anos, minha filha. Você, novinha, vinte primaveras, vai ter que aprender muitas coisas, entre elas, a assoprar com destreza para fazer o “pinguelo” do sujeito chegar aos finalmente...
— Mãe, namorei vários rapazes da minha idade. Onde cheguei? Em lugar nenhum. Só se aproveitaram de mim...
Patrícia, apesar de todos os conselhos da mãe, e das amigas, não conseguia esquecer os olhos gentis do doutor Avarício, nem a maneira como ele a deixava a vontade e a fazia rir. Os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses. O doutor Avarício e ela continuaram a se encontrar no café da esquina. Virou rotina. Eles riam, compartilhavam segredos e sonhos. O tempo parecia irrelevante quando estavam juntos. Um dia, enquanto observavam o pôr do sol, na Praia do Arpoador, o velhote partiu para o abraço:
— O amor não tem idade, minha querida. Ele transcende o tempo e nos leva além das convenções. Você me ensinou a ver a vida com novas perspectivas.
A garota sorriu e segurou as mãos dele. Em seguida, beijou o nos lábios:
— E você, meu príncipe, me mostrou que a eternidade pode caber em um único momento. Este que estamos vivendo agora...
O velhote não deixou por menos. Dono de si, atacou:
— Minha vida, quer morar comigo lá naquele apartamento que eu te levei?
Patrícia se abriu em pranto. Pediu um tempo. Dois dias depois, veio com a resposta. Aceitou:
— Se a sua proposta ainda estiver em pé, sim, meu amor, eu quero...
Depois desse fato, o doutor Avarício, não só teve o prazer inusitado de levar a jovem somente para ver o apartamento. Decidiram, de comum acordo, dividir o mesmo teto da Rua Sá Ferreira. No aconchego de quatro paredes, ambos se completaram. Fizeram amor (verdade!), e o melhor de tudo: seguiram escrevendo a sua história meio estranha aos esbugalhados dos mais chegados, o que, na ótica deles o quadro destoava e não só desafinava, ou conflitava, insultava e injuriava todas as formas existentes de julgamentos e formalismos relacionadas aos preconceitos impostos pela sociedade.
Cinco anos depois, do nada, a beldade caiu doente. O diagnóstico dela se fez fatal e irreversível. Câncer. Em estado adiantado. Descoberta a enfermidade, viveu por mais seis meses e depois veio a óbito. O doutor Avarício ainda está firme e forte. Modo de dizer, obviamente. Segue a sua vidinha normal. Entretanto, agora, carrega uma tristeza dentro do peito. Todos os domingos vai até o Cemitério São João Batista, na General Polidoro, onde a sua candura dos lábios de mel repousa nos braços eternos do Criador. Respeitosamente deposita uma rosa vermelha (a flor que ela tanto gostava) sobre o túmulo, faz uma prece ligeira, vira as costas e se afasta chorando.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 21-5-2024
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