sexta-feira, 10 de maio de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Bicho de sete cabeças

Aparecido Raimundo de Souza

O SUJEITO METE a chave na única porta existente e gira a maçaneta. A moça que vem com ele, logo atrás, ao olhar para o interior do pequeno espaço e nada enxergar, começa a reclamar:
— Credo, Moacir, que escuridão. Acenda a luz.
— Não tem luz.
— Não pagou a conta?
— Você me conhece muito bem, Margarete e sabe que odeio lugares iluminados. Por isso saí de casa e mudei para este apartamento. E aí, você vem ou vai pisar na bola?
— Vou, né. Fazer o quê? Cada louco com a sua mania. Não sei como você consegue viver no meio deste breu.
— Já me acostumei. E você também se acostumará. Venha comigo. Vou te levar pro quarto. É logo ali. Só me dê um minuto. Deixa passar a chave na porta.
O casal segue praticamente às apalpadelas. Não se vê um palmo adiante do nariz. Há uma janela, mas o trinco está emperrado.
— Calma. Não precisa correr ou se afobar. A cama está logo à direita. Cuidado com a mesa à frente. Evite dar topadas. Pode machucar a perna dela...
— Idiota. Você não tem jogado por algum canto desta espelunca uma vela, uma caixa de fósforos ou um isqueiro?
— Não. 

— Aparelho celular? 
— Não gosto de celular, você está careca de saber. Espera aí, mocinha: está querendo ligar pra alguém?
— Não seu imbecil. Só queria usar a luzinha da lanterna do telefone pra iluminar esta joça. De onde você tirou essa esquisitice de viver igual morcego?
— Deixa de fazer perguntas. Tire os sapatos, a saia, a blusa, fique à vontade. Enquanto isto seus olhos, por si só, se acostumarão à penumbra...
— Penumbra? Chama isto de penumbra. Me responde uma pergunta?

— Sim, sou todo ouvidos.
— Como acende o fogão?
— Não acendo.
— E como come?
— Com a boca...
— Engraçadinho!
— Não uso fogão, nem geladeira. Quando quero comer, vou aí na rua, você viu quando estávamos chegando? Tem uma padaria e dentro dela uma lanchonete.
— Você é pirado mesmo, acabei de crer.

CINCO MINUTOS DEPOIS.

— E aí, está difícil achar o que procura?
— Um pouco. Mas não se avexe. Logo chegaremos lá.
— Não querendo ser chata, mas já sendo. Pelo jeito, embora você viva igual bicho do mato nesta escuridão, parece que seu lado maluco ainda não se familiarizou muito com a falta de luz. Cá entre nós: a quanto tempo não mexe com essas coisas?
— Já perdi a conta. Chega um pouquinho prá trás.
— Uau! Que cama barulhenta. Por que você não tira o plástico?
— Gosto do barulho. Pode ver que é a única coisa que perturba o silêncio por aqui. Dá pra jogar esse travesseiro para o outro lado? 
— Se incomoda se eu o colocar no bumbum? 

— No meu, ou no seu? 
— No meu claro. Fico numa posição mais cômoda.
— Ta legal, eu deixo, mas com uma condição.
— Qual?
— Que você não peide no pobre coitado.
Risos.
— Claro que não. Seu bobo. E o buraquinho?
— Nada. Nunca vi um trocinho tão apertado. E eu que pensei já estivesse bem treinado...
Mais risos.
— Quer que eu passe vaselina?

— Não estou achando nada engraçado. Deixa suas piadinhas pra depois!
— Minha intenção é te descontrair.
— Pareço agitado?
— Se tivéssemos no claro e eu pudesse ver seu rosto... pela voz parece tenso. E espia: está suado feito um porco. Parece saído debaixo de um chuveiro.
— O que sugere, Margarete?
— Já tentou apalpar a bicha com a mão?
— Não havia pensado nisso. Puxa o lençol.
— Já puxei.

— Tive uma ideia. Vira de ladinho.
— Ué! Pra quê?
— Vira e não faça pergunta...
— Tá legal. Pronto. Conseguiu?
— Quase...
— Vá devagar. Espera aí: me dá a sua mão.
— O que pretende?
— Vou encostar seu dedo nela.
— Pode deixar que eu acho sozinho!
— Não precisa ficar irritado. Só quero ajudar, ser gentil...

MAIS DEZ MINUTOS SE PASSAM. PARECE UMA ETERNIDADE. 

— Merda! O que foi que você fez agora, Margarete? De novo esse travesseiro! Que diabo! Você está... você está de quatro?
— Não, sua besta. Minha bunda virou por vontade própria o meu cu para a sua lua sem eu perceber.
— Por que está de quatro?
— Meu anel. O desgraçado caiu por aqui. Porra, por que eu não enfiei um holofote na bolsa?
— O que está tentando fazer, afinal?
— Te ajudar, Moacir.
— Com a bunda arrebitada pro meu lado? Quer me dizer como?
— Mal-agradecido.

— Tudo bem. Deita de bruços.
— De bruços? Meu Deus... e pra quê?
— Pretendo mudar de posição. Cuidado agora. Estou passando por cima de você. No cinco... um...dois...
— Ai, cacete! Devagar, Moacir. Como você é desajeitado.
— Eu?
— Não, minha vovozinha.
— Desculpa.
— Aiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...
— O que foi desta vez?
— Você pisou no meu braço, seu idiota. Doeu.

— Tá legal. Perdão. Precisava gritar feito uma debilóide?
— Estou furiosa, Moacir. Odeio casa escura. Perdi meu anel, você pisou no meu braço, não acha este maldito buraco e eu vou acabar não vendo o que tinha em mente.
— Margarete, você veio até aqui pra me torrar a paciência?
— Vim te ver, seu jumento. Estava com saudades. Só não esperava ser recebida no escuro.
— Eu mereço!
— Termina logo. Daqui a pouco tenho que dar o fora. Você sabe como meu querido maridinho é chato. Se não chego no horário...
— Se você parasse de resmungar e me ajudasse de fato...

— Não seja por isso. Cadê o macho. Bota o troço aqui na minha mão. Meu pai do céu, que dificuldade pra cutucar um simples buraco!
— Ok. Aceitarei a sua ajuda. Agora feche a matraca.
— Está sentindo Moacir?
— To, Margarete...
— Vai Moacir, mete logo essa parada... vai, vai, vaiii...
— Ô fêmea difícil. Eita! Vivaaaaaaaaaaaaaa! Consegui!...

Num piscar de olhos, a imagem da televisão pendurada na parede ilumina o ambiente. Os dois irmãos sorriem, se abraçam e se acomodam. Cada um de um lado da cama. — “Bendita tomada!.”

Bem na hora, A novela acabava de começar.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, 10-5-2024

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