sexta-feira, 21 de junho de 2024

[Aparecido rasga o verbo] A síndrome do passarinho teimoso

Aparecido Raimundo de Souza

O FULA MULATREZO foi ao médico ginecologista que lhe fora indicado pela Zilma Deuprassett, uma imbecilóide assumida desde os tempos em que os homens viviam nas cavernas. La chegando, na recepção, a Marilda lhe direcionou para a doutora indicada, contudo, houve um contratempo entre os dois. A conversa rolou mais ou menos assim.
Médica.
— O senhor por gentileza volta lá na recepção e informe para a mocinha que lhe atendeu, a Marilda, que o prezado precisa urgentemente passar por um médico de ouvido, nariz e garganta.
Fula Mulatrezo nesse momento se coçou, como se estivesse com uma sarna das brabas por todo o corpo esquelético.
— Dotora, pelo que a sinhora teim de mais sagrado -, acho que sua mãe -, seus filhos -, sei lá, meu pobrema é “nus ouvidu. ”Meu nariz está com os cheradoris bons. Troquei os filtro deles, não tem uma semana e a minha garganta, “mais melhor ainda.”

A esculápia (1) se abriu num sorriso meigo. Propôs:
— Meu caro amigo. Volte à recepção, devolva o encaminhamento que lhe foi dado pela sua amiga e peça para a senhorita Marilda substituir por um outro, só que desta vez, para os cuidados de um bamba em ouvidos, narizes e gargantas.
Fula Mulatrezo, mais perdido que cego em tiroteio, zangou os ânimos.
— Quirida, já lhi falei qui...
A jovem, porém, o interrompeu.
— Meu lindo e fofo, eu não cuido dessa parte. Minha especialidade é outra.

Fula Mulatrezo questionou esse “outra.”
— E qual é a sua especialidade?
— Sou gineca...
Fula Mulatrezo, sem entender bulhufas, insistiu.
— Minha linda, me dá uma canja. Podi ser de galinha fujona, ou de presidenta de pulero. Qui doença é essa? Gineca? Nunca ouvi falá.

A graciosa, riu com vontade.
— Gineca é a abreviatura de ginecologista.
Fula Mulatrezo estava à beira de perder a paciência.
— A sinhora é uma figura difíci... o que faz uma ginecologista?
A cirurgiã coçou a orelha e tentou se mostrar passiva sobre os sapatos, sem dar um chilique e seus pés saírem correndo.
— Eu cuido daquele lugar onde o senhor se diverte...
Fula Mulatrezo ficou mais nervoso que ladrãozinho de primeira viagem pego em flagrante delito.
— Desisto, minha diva.

Fula Mulatrezo na sua preeminência virou as costas, e enquanto soltava uns palavrões, pegou o corredor enorme voltando ao balcão de onde viera originariamente. Ao ver a Marilda, não perdeu tempo.
— Moça, eu cabei de falar com a dotora e ela disse que não pode mi atender. É para a senhorita, por favor, me encaminhá a um “dotor que cuida dos trêis.”

Marilda se escangalhou num sorriso ruidoso.
— Não entendi, senhor. Dos três? Que três?
— Meu pai santíssimu. A sinhora me mandô para um gineca.
— O senhor não estava à cata de uma ginecologista? Sua esposa...
— Sinhorita, eu vim comigo sozinho para essa droga de hospital. Não tenho esposa...
Marilda apontou para uma mulher jovem com uma criança recém-nascida.
— O senhor entrou com aquela senhora ali. Pensei que...
Fula Mulatrezo, sem paciência, bateu no balcão, chamando a atenção dos demais que aguardavam na recepção superlotada.
— Moça, eu só pedi para aquela sinhora uma informação.
A garota, mordeu a caneta, sem saber que decisão tomar.
— E qual seria?

Fula Mulatrezo vociferou.
— Um dotor que cuida dos zuvido, moça...
A atendente, sorriu e pediu desculpas.
— Ah, agora a ficha caiu. Não havia lido o papel. O senhor quer um otorrino?
— Por acasu eu “to rino?” Tenhu cara de queim tá dano gargalhada como mula veia, digo, mala veia?

Desfeita a confusão formada, Fula Mulatrezo foi finalmente direcionado ao clínico, um tal de doutor Epaminondas.
— Por gentileza, meu senhor. Final do corredor, faça o “L” virando à esquerda. O consultório é o último. “Não tem errada.” É o de número treze.
Fula Mulatrezo, disposto a criar problema.
— Antes de ir para ondi me indicô. Posso saber do que a sinhorita está rindu?

A moça, teve uma crise de espirros. Passou a mão num lenço e o embebedou em álcool.
— Não estou rindo, senhor. Desculpe os meus espirros. Eu lhe encaminhei ao doutor Epaminondas, otorrinolaringologista. Ele o aguarda. É só entrar...
Fula seguiu para o local. Ao se ver frente ao médico, começou a explicar a sua desdita, sem dar tempo de o clínico perguntar o nome.
— Dotor – começou a voz compungida (2) – Tenhu um passarinhu nos meu zuvido esquerdu. É uma droga de ave, ou seja lá como quera chamá o troço. É infernal. Late (3), digo, tem um apitite dos infernu para cantar. Faz isso dia e noite.
— Late? E como ele late?
— Ora dotor, imitano um pombo famintu dessis que voa na genti meio da rua...

O médico prontamente tratou de fazer os exames prévios minuciosos e, ao final deles, descobriu que na realidade seu mais novo paciente não tinha nada. O ouvido em questão estava perfeito. Apenas se agigantava um acúmulo de cera. Iniciou uma lavagem para remover o excesso de cerume. Usou uma seringa, água morna e soro fisiológico.
— Pronto. Seu ouvido está joia.

Não estava. Na quinta feira seguinte, o inesperado. Fula voltou. O tal passarinho continuava importunando seus castos escutadores de novelas. Embora o doutor tivesse esclarecido que não havia mais nada a ser feito, Fula não se conformou. Nesse tom, tanto encheu a cabeça do médico que ele repetiu o procedimento. E assim foi aproximadamente por quinze quintas-feiras ininterruptas, mesmo horário e sem falhar uma sequer.
— O passarinhu, dotor. Estou ficano disatinadu... vô enlouquecê... acabarei dano um tiru de bala neli.

Um mês, dois, toda quinta feira, mesmo horário, Fula aparecia com o inferno do passarinho não lhe dando pausa para descanso. No quarto mês, obviamente, a ponto de mandar o Fula para os quintos, o doutor teve uma ideia meio que desorbitada. Talvez desse resultado. Pediu a um vizinho seu que adorava passarinhos. Esse confinante possuía um viveiro com as mais variadas espécies. Rogou que o “criador” lhe vendesse um. O amigo acedeu liberando uma de suas avezinhas com gaiola e tudo. Com o passarinho nas mãos e sem que ninguém o visse, naquele começo de quinta, o doutor Epaminondas mudou a rotina.

Chegou antes de serem escancaradas as portas do PA e seguiu às escondidas para seu consultório com a gaiola oculta dentro de uma caixa enorme. Atendeu todos que estavam agendados. Quase ao término do expediente, mesmo horário, como de certa forma já esperado, o Fula pintou para uma nova e cansativa consulta.
— Dotor, vô mi atira dibaixu de um carru. Di preferência que ele ainda esteja paradu. Ou caçar uma ponti e sautar. Estou nas última. Não tenhu mais a quem recorrê...

O otorrinolaringologista de aviso prévio em relação ao chato, interfonou à recepção e quando a Marilda atendeu, cuidou de informar a ela que excepcionalmente, naquele final de quinta, não atenderia mais ninguém. Havia, dois, ainda na espera. Nesse espiche (4), a intenção de não só pôr mãos à obra, como votava a ideia de que aquela quinta seria a definitiva. Na expectativa de colocar a sua brilhante imaginação em prática, trancou a porta por dentro (o que nunca fazia) e passou ao atendimento do chatérrimo e cansativo paciente. Se o seu intento desse certo, ou o infeliz se livrava de vez do passarinho, ou pediria a sua transferência para um hospital que fosse o mais distante possível daquele ser intragável que só aparecia para lhe perturbar a paz e causticar o espírito.

Mãos à obra, repetiu a lavagem, umas quatro vezes seguidas, para despistar o “maluco” e dar a ele a impressão de que açoitava o passarinho oculto. De modo derradeiro, se apressou a cobrir a cabeça do cidadão com uma toalha de banho de cor escura.
— Fique quieto, não se mexa e mantenha os olhos fechados.
— Ok, dotor.
— Me diga. Está ouvindo o passarinho cantando?
— Auto e em boum tom, dotor.
— A partir de hoje ele não lhe incomodará mais.

O passo seguinte foi se dirigir até a pequena cozinha no fundo da qual havia um pequeno banheiro e um dispensa. Abriu o acesso e sacou da gaiola, carinhosamente se apoderando do passarinho, redobrando a atenção e pedindo à Deus que seu plano não fosse por água abaixo. Em gesto rápido fingiu examinar maiormente o ouvido de Fula. Por fim, na indução imposta ao rapaz, meio que à força, finalmente mostraria a ele a pequena ave, e esperaria, em passo seguinte, se se permitiria gozar de uma situação inusitada, e por que não apimentar a tramoia, como privilegiada por ter realizado o plano da cura perfeita?
— Meu caro amigo Fula, seus problemas acabarão hoje. Realmente o amigo tinha razão. Acabei de ver o passarinho.

Fula Mulatrezo sorriu. Bateu palmas. Rezou um Pai Nosso.
— Que Deus lhe oça, dotor. O filho de uma égua continua cantando...
— Pois não cantará mais. Se tal acontecer depois de hoje, deixo de me chamar otorrinolaringologista e passarei a clinicar somente na área das aves com epaminondologias brabas. Perdão, meu amigo. Me embolei todo. Não se prestava a minha intenção em dizer o que acabei de botar para fora...
No auge do derradeiro momento que antecederia a sua gloria e a libertação do paciente, o doutor Epaminondas agradeceu ao Altíssimo e se fartou arroubando palavras numa voz lindamente emocionada.

— Vamos nessa. Chegou o momento. Fique tranquilo. Não se mexa. Vou puxa-lo agora. Calma... depois, nós dois, iremos até a janela e o soltaremos. De acordo?
— Craro qui sim, dotor. Eu ainda creo em milagres.
— Isso é fantástico. Ajudará bastante...

Quando, em epitomo, o doutor removeu a toalha do rosto, e pediu que o mala sem alça arreganhasse os olhos, Fula Mulatrezo caiu em choro convulso. O especialista capturou num rápido reflexo, um serpenteamento diferente se descortinando. O panorama do encontro entre o passarinho e o Fula foi tão angelical e comovente, que até o próprio médico precisou se segurar para não cair na emoção. Disfarçadamente se espantou enxugando umas lágrimas persistentes nos cantos dos olhos.
— Agora à janela. Com as nossas mãos seguraremos a criaturinha com suavidade. Cuidado. Não faça movimentos bruscos. Não o deixe voar... vamos, amigo Fula. Alforriaremos seu problema para que nunca mais o incomode... devagar, me acompanhe...

Caminharam lentamente até a janela escancarada para a avenida movimentada. Ambos segurando o passarinho aos afagos de quatro mãos. Fula Mulatrezo chorava, sorria, tremia, tudo de uma só vez, como se o circo armado pelo médico efetivamente traria a sua cura definitiva. O amolante estava tão concentrado que nem respirar conseguia.
— Pronto, vamos solta-lo agora... no três... um... dois... trêêêêêêêê...

Assim foi. Não cabendo em si de contentamento, Fula Mulatrezo precisou ser amparado para não desabar. O antipático estava tão concentrado que urinou pernas abaixo a ponto de molhar a calça e os sapatos. Contudo, enfim, se viu curado da sua maldita doença do passarinho cantante. Para o médico, a lembrança do paciente que se tornara uma pedra em seu caminho, a partir daquele minuto da disjunção, passou a agasalhar em seu peito a certeza de que o enojado não mais o perturbaria. E acertou na mosca. A “despregadura” do pássaro incomodante, pôs realmente um ponto final definitivo naquele quadro constrangedor. Literalmente descosido do trauma, Fula se despediu e nunca mais deu sinais de vida. O médico, naquele dia que nunca mais sairá da sua mente, lembra que ao se livrar do chato, abriu uma garrafa de vinho que sempre mantinha na geladeira, chamou a Marilda (com quem tinha um caso às escondidas) e comemorou a sua vitória. Enquanto se fartava com a bebida e dava uns amassos na recepcionista, e, de roldão, se vangloriava pelo brilhantismo que tivera da terapia com a “bípede emplumada,” o espertalhão chegou à conclusão que os reveses de Fula com o pássaro não iam além de falsos aranhóis.

Notas de rodapé

1) Esculápia ou esculápio – O mesmo que médico ou médica. Termo pouco usado.
2) Compungida – Arrependida, pesarosa, embargada.
3) Late – No sentido do texto, o personagem, meio que fora de si, se atrapalhou e falou o que lhe veio à cabeça. Ele, na verdade, quis sinalizar que o passarinho, obviamente cantava.
4) Espiche – Também no texto, a palavra sinaliza ou assinala o ato de esticar ou alongar um determinado ponto dentro do assunto descrito.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 21-6-2024 

Anteriores: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-