sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Sem vergonha

Henrique Pereira dos Santos

Eu sei que não faz muito sentido fazer comentários ao que escreve Luísa Semedo, uma tripla vítima da sociedade (por ser mulher, mulata e bissexual), professora de filosofia e cuja clareza de ideias pode ser avaliada facilmente por isto: "Este tipo de dominação cobarde, violenta e criminosa sobre os corpos das mulheres é semelhante à dominação colonial. Um poder que domina mentes e corpos, enfraquecendo-os previamente através da criação de relações de dependência vital, maus tratos, aprisionamento, trabalho forçado, violações e outros atos de violência extrema, sempre num desequilíbrio absoluto de forças".

Por si só, esta confusão mental entre violações continuadas ao longo de anos sobre a mesma mulher drogada e a dominação colonial não me faria fazer um comentário, apesar do que isto significa de suavização da violência absurda a que foi sujeita Gisèle Pelicot.

"ao acompanhar ... o caso de dezenas de homens que violaram uma mulher em França e a rusga que humilhou dezenas de emigrantes em Portugal, não pude deixar de refletir sobre as semelhanças entre ambos".

Não, não se trata de uma tontinha que não tem noção do que está a dizer, tanto tem noção que imediatamente ensaia um arremedo de justificação para a barbaridade do que se está a escrever "Apesar de serem situações consubstancialmente distintas, ambas revelam uma perturbante continuidade nas dinâmicas de poder e na domesticação dos corpos".

Por que razão uma pessoa que branqueia alarvemente a violação de uma mulher, repetida vezes sem fim ("violações e outros atos de violência extrema", escrever-se-á mais à frente, numa demonstração de que se tem perfeita noção de que a violação, repetida ao longo de anos, daquela mulher em concreto é de uma violência inacreditável e excepcional), pode escrever num jornal de esquerda caviar o que escreveu neste caso, sem que se ouça um murmúrio de indignação?

Aparentemente, porque na verdade o mais relevante para esta esquerda sem princípios nem vergonha, o essencial, é apresentar uma rusga policial, acompanhada pelo ministério público, em que as pessoas são encostadas a uma parede, revistadas e mandadas seguir, como sendo uma ação de violência inaudita "uma domesticação dos corpos" na formulação ridícula escolhida para garantir o efeito retórico pretendido, sem o menor pudor em usar uma situação como a de Gisèle Pelicot como paralelismo.

Pedro Adão e Silva, por exemplo, tem mais juízo, mas não tem dúvidas em classificar o que se passou como uma "operação policial assente em violência gratuita", razão pela qual lhe dá jeito que haja maluquinhos que fazem paralelismos que ajudem a fixar a ideia de que uma operação policial da qual não resulta uma única escoriação, um único insulto reportado, uma única queixa por parte de qualquer vítima, é uma operação policial assente em violência gratuita.

Depois queixem-se de que os eleitores, percebendo que "todas as palavras estão gastas", concluam o mesmo que o Eugénio: "Adeus".

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 27-12-2024

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