terça-feira, 24 de dezembro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Pesadelos da noite de Natal

Aparecido Raimundo de Souza 

A NOITE DE NATAL sempre me chega trazendo um brilho estranho, um quadro sistêmico, meio que desumano. Apesar das ruas da cidade, das praças e dos prédios se vestirem enfeitadas com luzes cintilantes, eu vejo em tudo o que me rodeia um vazio imenso. Um colossal e pegajoso precipício. Parece, este inaudito, ganhar vida própria dentro de uma solidão pesada e mesquinha que acompanha os meus passos o ano inteiro. Vislumbro árvores de Natal decoradas nas calçadas da praia, alimentadas com cuidado e carinho como se em cada ornamento carregasse uma memória especial. Existe, bem sei, um mundo ao meu redor, um universo paralelo que celebra o magnânimo. Todavia, há também, uma taciturnidade funesta e assoberbante, malfadada e insana que se instalou em meu peito. É uma espécie caricata de solidão pesada, diria sem medo de errar, uma desgraça obnubilada e incoerente, bárbara e hostil, que se faz mais presente exatamente nesta noite, quando todos parecem ter alguém com quem compartilhar sorrisos e abraços. 

Nesta hora em que escrevo, a ausência de companhia se torna mais palpável, e a saudade de tempos mais alegres se mistura com as luzes cintilantes. Longe dos familiares que não tenho e dos amigos que também não possuo, enfim, divorciado dos seres vivos que circundavam ao meu redor, incrivelmente tais criaturas criaram asas enormes e voaram para insulares e semotos lugares que desconheço. Esta sensação de distância e ausência é realmente dolorosa, especialmente em uma época em que normalmente associamos, num só contexto, a consanguinidade dos mais chegados, bem ainda os amigos e a celebração, tipo assim, de todos os demais irmanados e de mãos dadas agraciados em uma sustentação única de apoio um ao outro. A noite de Natal, em outros idos, sempre chegava trazendo consigo uma resplandescência de brilho diferente. Mamãe Ana, ainda viva (que o Pai Maior lhe dê o merecido descanso), se transformava no “pilar-base” que sustentava a prole. Não carecia de ruas enfeitadas, ou de árvores espalhadas pelo calçadão da praia. 

Só a presença dela se fazia bastante para dar vida e cor entrelaçando os pequenos mimos e tudo que orbitava ao redor, ou ao entorno de nós. O significado da plenitude ganhava vida própria. Não se fazia necessário, pois, ficar esmiuçando ou procurando belezas nas árvores de Natal, ou nos parques e jardins, porque ela era a árvore viva que decorava cada canto da casa, usque cada pedacinho de nós e o fazia repletada com um cuidado divinal –, uma espécie rara de efemeridade que em dias de hoje, está cada vez mais difícil e escasso de ser encontrado. Jorge, meu padrasto (que Deus igualmente o tenha), inebriava uma alma incomensurável. O cara fazia questão de reunir cada um dos seus e brigava, se na noite de Natal não estivéssemos todos ali, unidos e colados, para nos alimentarmos da sua emoção e da vida plena que emanava de dentro de seu coração. Apesar de seu corpo envelhecido, em face dos janeiros que vincaram fortemente seus anos vividos, se podia perceber em rugas latentes de seu rosto, o sorriso bonachão que nunca abandonava a sua amabilidade para dar lugar a uma tristeza, por mais fastidiosa que fosse. 

Em razão disso, voltando ao “hoje-agora,” enquanto o mundo lá fora, invoca o Natal, percebo um silêncio sepulcral que se instalou dentro de meu “eu”. Não é bem um silêncio. A coisa está mais para uma relegação distanciada. Um árido desabitado; um páramo de distorções gigantescas entrelaçadas a uma solidão infame e aterradora que se faz mais conluiada e mais severa juntamente nesta noite, quando todos parecem ter alguém com quem compartilhar sorrisos e abraços. Neste momento, a ausência de companhia se torna mais palpável, e o regalo de tempos mais álacres e saudáveis se mistura com as luzes cintilantes. Entre mortos e feridos, aqui estou às enchanças de lembranças amarelentas e incoerentes tentando encontrar o meu lugar dentro de um arbítrio menos causticante nesta noite de auspiciosa louvação. Apesar de cercado pelas decorações e pelo clima festivo, sigo buscando a lacuna faltosa daqueles que agora estão distantes, sitiados e abarrancados em seus próprios casulos. 

Meus filhos e filhas me bloquearam. A minha “ex” companheira também jogou a toalha e se fechou – ou melhor – se trancou a sete chaves em seu cantinho e lá está sem comunicação – pelo menos para comigo. Os netos se juntaram a outros primos e primas e cada um vive no agora o seu presente sem lembrar que o velho avô queria apenas um beijo e um abraço – ou no pior dos mundos – uma ligeira mensagem de texto ou e-mail. Pois é! A noite de Natal sempre chega trazendo consigo um brilho diferente. As ruas e praças, enfeitadas com luzes cintilantes, parecem ganhar vida própria. Capturo árvores de Natal decoradas com cuidado e carinho. Cada ornamento traduz uma memória imorredoura. Especificamente, no meu caso, a minha mãe falecida, meu pai ausente, vitimado pela morte, meu padrasto – sem mencionar os “amigos meias-bocas” que escafederam na fumaça. A agonia que está colada nos meus calcanhares, pesa, especialmente nesta época em que as ausências são mais sentidas em suas deformidades. 

Neste tom, enquanto o mundo soleniza o mutismo que se instalou, a vida segue indiferente. A solidão, idem. Ah, Meu Pai! Justo nesta noite, quando todos pareciam ter alguém com quem compartilhar sorrisos e abraços, a disjunção de companhia se tornou mais palpável, e os augúrios de tempos alegres se misturaram com as luzes cintilantes. De roldão, nenhum telefonema, nenhuma mensagem de WhatsApp. O oco das notificações que não chegaram reforça o sentimento de isolamento. Cada segundo que passa parece um lembrete cruel da distância que agora existe entre mim e aqueles que um dia estiveram tão próximos. Longe da família, dos amigos, dos que viviam ao meu redor, esta galera criou asas e voou para algum lugar que desconheço. E aqui estou, à margem de lembranças, tentando encontrar o meu lugar na noite da exaltação ao Nascimento de Jesus Cristo. Mesmo cercado pelas decorações e pelo clima festivo, sinto a falta daqueles que agora estão distantes, mergulhados em seus próprios pedacinhos de chão. Em meio deste ermo, há também uma quietude. Um momento de reflexão sobre o que realmente importa. As conexões que ainda podem ou poderiam ser construídas, mesmo que de maneiras diferentes. É um tempo que nos é dado para valorizarmos a nossa própria companhia e encontrar pequenos momentos de euforia que acredito piamente, se acheguem recheados da mais completa PAZ. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 24-12-2024 

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Um comentário:

  1. Gostaria de deixar a minha humilde opinião sobre o texto de Aparecido Raimundo de Souza, pesadelos da noite de natal, logo acima, publicado neste blog em 24.de dezembro. A meu ver, o texto tem um tom profundamente melancólico e nostálgico. Ele descreve uma noite de natal marcada pela solidão e pelo vazio, contrastando com o brilho e a alegria esperados nessa época do ano. Fala também sobre como a ausência de entes queridos e amigos torna essa noite ainda mais difícil, trazendo à tona memórias de tempos mais felizes e a saudade daqueles que se foram ou estão distantes. O texto captura a dualidade do natal. Como assim? De um lado, a celebração e as luzes cintilantes que enfeitam a cidade. Do outro, a sensação de isolamento e a tristeza que algumas pessoas podem sentir, especialmente quando comparadas à alegria ao redor. O Aparecido reflete sobre a importância da companhia e das conexões humanas, e como a falta dessas conexões pode ser particularmente dolorosa durante as festas. Ele também menciona figuras importantes de seu passado, como sua mãe e seu padrasto, que traziam significado e alegria para a celebração natalina, contrastando com a realidade atual de distância e desconexão. É um trabalho simples, mas de profundidade tocante que evoca a solidão e a saudade, mas também convida à reflexão sobre o verdadeiro sentido do natal e a importância das relações humanas. Como leitora assídua dos trabalhos dele, Aparecido e de Carina, uma simples leitora só tem a acrescentar o seguinte. Eu vejo essa reflexão de Aparecido Raimundo de Souza como uma expressão profunda da experiência humana, capturando sentimentos universais de solidão, nostalgia e a busca por significado, especialmente durante momentos culturalmente significativos como é o caso do natal. Nesta crônica, noto um contraste poderoso entre a alegria externa das festividades e o vazio interno que o autor sente. Essa dicotomia ressalta a complexidade das emoções humanas, onde a presença de luzes e celebrações pode agravar ainda mais a sensação de ausência e isolamento para aqueles que estão sozinhos. Também percebo a riqueza da linguagem, a maneira como as palavras são usadas para evocar emoções e pintar imagens vívidas da memória e da saudade. Além disso, essa reflexão a meu ver é claro, pode ser vista como um convite à empatia e à compreensão das diversas realidades emocionais que as pessoas podem viver, especialmente em épocas de celebração coletiva. A solidão descrita pelo Aparecido é uma lembrança da importância das conexões humanas e do apoio emocional. É também um lembrete de que, por trás das festividades, há histórias individuais que podem estar repletas de dor e saudade. A narrativa de Aparecido nos convida a olhar além das aparências e a reconhecer a profundidade das experiências humanas. Acho que disse tudo. Falar mais é chover no molhado, malhar em ferro frio. Na verdade, o Aparecido já disse tudo. Acrescentar alguma coisa é desnecessário. Agradeço a Carina, que deu uma corrigida no que escrevi.
    Tatiana Gomes Neves, do sitio Shangri-là, ES/MG.

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