sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Quando o feio se torna bonito

Aparecido Raimundo de Souza 

NA BUCÓLICA e aconchegante Pedra do Sol, onde as casinhas coloridas pareciam saídas de um conto de fadas, vivia um homem de trinta anos chamado Carlos Eduardo. O rapaz se fizera conhecido nessa localidade, por dois motivos distintos. Exímio trabalhador. Todos o conheciam pelo apelido de “pau pra toda obra.” Como tal, fazia jus à essa alcunha. Não enjeitava serviços.  O outro desígnio não se alinhava aos magnânimos do exórdio politicamente atraente em face da sua aparência pouco melodiosa.  Carlos Eduardo, embora honesto e trabalhador, o que o afastava da sociedade —, nada mais —, nada menos, que a sua figura envilecida. 

O nariz adunco e as orelhas de abano. Completava a gama pejorativa, um rosto com as características da síndrome de Berardinelli-Seip, além de parte da boca (lado esquerdo), deformada vitimado por uma paralisia de nascença. Sem falar na postura completamente desajeitada de seu corpo. Carlos Eduardo, não se encaixava nos padrões de beleza que a sociedade (pelo menos a local) tanto prezava. No entanto, a sua alma (ela toda) se quedava revestida de uma bondade ímpar, nascida de seu interior, como um presente dado por Deus. Do outro lado da cidade, separada apenas pela ponte sobre o Rio de São José e o leito da estrada de ferro onde corriam em meio a uma nuvem negra como cachimbos cheios de buracos, a longeva Maria Fumaça barulhenta e seus oito vagões senilizados. 

Dava a se perceber, nessa passagem da composição, às seis da manhã e às cinco da tarde, pela breve “paradinha” na estação de teto esburacado, que o comboio se fazia cada vez mais definhado pelos carcomidos do cansaço. No mais, tudo podia ser transposto tanto pela ponte igualmente encanecida, como por sobre os dormentes da linha de ferro. Num vilarejo de casinhas desconfortadas, quase às ruinas, morava sozinha a Maria Elisa, uma jovem de vinte e oito anos, dona de uma beleza estonteante. Seus cabelos dourados brilhavam ao sol e seus olhos azuis lembravam o infinito. Maria Eliza ia além do epítome da perfeição física. 

Em seu “eu” oculto, batia um coração grandioso e extremamente bondoso e colossal. Porém, vivia essa moça aprisionada pela solidão e falta de um amor que lhe desse uma razão para continuar vivendo. Um dia, numa manhã de domingo de sol escaldante, Carlos Eduardo caminhava pela praça central, distraído com seus pensamentos vazios. Chamado às pressas na casa de um cliente, repararia um vazamento que esborrava água à rodo inundando todos os cantos da residência. Ao dobrar a esquina para galgar a plataforma da estação, tropeçou em algo... ou melhor, em alguém. Espantado, espiou para divisar quem o havia posto fora de prumo. Esse alguém, a Maria Eliza, que no inopinado, deixou cair a sua bolsa cheia de compras que fizera no supermercado. 

Ao tentar apanha-la, esbarrou em Carlos Eduardo. Pelo impacto, foram cair de quatro um sobre o outro, ao leito do caminho do trem. Ao se ver diante daquela deusa com o bumbum virado para cima, o vestido curto mostrando parte do pecado traseiro, percebeu que a beldade se prestava a recolher, em inopino os pacotes e as frutas espalhadas que haviam se deitado ao longo dos paralelos ferroviários. Carlos Eduardo, desviando os esbugalhos da inflação, se prontificou a ajudar. No momento em que seus rostos se cruzaram na mesma ênfase meridiana, Maria Eliza, inicialmente irritada, pensou em desbocar uns impropérios. 

Percebeu, porém, a bondade nos olhos de Carlos Eduardo. O rapaz, por sua vez, se quedou encantado com a fragilidade que vislumbrou por consequência da fachada de perfeição daquela deusa. Cata laranjas aqui, tomates e pacotes de macarrão e arroz acolá, começaram a conversar e, aos poucos, uma amizade improvável floresceu. Maria Eliza descobriu que a verdadeira beleza de Carlos Eduardo (que apenas conhecia pela horribilidade), se fazia robusta em seu caráter e em suas ações. Aos sentimentos dela, ele se mostrou um homem de alma pura, capaz de enxergar a majestade nas pequenas coisas da vida. 

Por outro lado, a criatura cadavérica aprendeu que Maria Eliza, apesar de sua aparência deslumbrante, precisava urgentemente de alguém que a amasse pelo que ela era, não pelo que a sua galhardia transmitia. Com o pouco tempo causado pela topada, a amizade deles se transformou em algo profundo. A cidade inteira foi testemunha do romance que coisa de um mês depois desafiou os padrões e preconceitos. As pessoas começaram a coadunar que a beleza física se fazia efêmera, todavia, o garbo do mais profundo ultrapassava os regaços do que se mantinha homiziado. E assim, no nevrálgico da cidade de Pedra do Sol, o feio que bateu de frente no bonito se tornou o casal que ensinou a galera a lição de que a verdadeira beleza é invisível aos olhos, mas indubitavelmente desabrochado dentro do coração. 

Esse encontro (repetindo a cena) foi um momento de casualidade mágica. Carlos Eduardo, atarantado em seus pensamentos, não percebeu, na sua correria desabalada, que se chocaria com a Maria Eliza. Ela, igualmente aérea, a bolsa pesada que levava cheia de mantimentos, ao se agachar para recolher os itens que se derramara, não atinou que diante de si o milagre se fizera real. Nesse instante de distração mútua, ambos se abalroaram de forma inesperada ao se “tropeçarem” entre si. Maria Eliza, inicialmente aborrecida, olhou para o apalermado, esperando ver um rosto indiferente, ou no pior dos mundos, furiosamente zangado. 

No entanto, harmonizou uma figura terna e genuinamente maleável, um alguém preocupado que, sem esperar por desculpas, ou berrar impropérios, imediatamente se abaixou para ajudar. Ele recolheu os objetos dela com cuidado e, ao lhe entregar, entremeado a sorrisos blandiciados de desejos ocultos, seus batimentos cardíacos se expandiram numa taquicardia endoidada, que culminou explodindo envolta no mais puro e lídimo gesto de boa casta. Só então Carlos Eduardo, vencendo a timidez, murmurou repetidamente um pedido de desculpas. Maria Eliza, que também seguiu a mesma regra, capturou algo diferente nele. 

Pressentiu uma sinceridade ímpar que não se fazia familiar nas pessoas ao seu entorno. A irritação inicial pela bolsa escapada, deu lugar a uma curiosidade inquietante. Sem arredar os pés, ambos agachados começaram a conversar ali mesmo, desta feita cercados pela vida que continuava em seu ritmo acelerado. Foi nesse breve encontro aos trambolhões, que o arroubo de um futuro próspero se firmou nos primeiros passos e a sedução magnificente do cupido se projetou real. Carlos Eduardo e Maia Eliza descobriram que, apesar das aparências tão contrastantes, havia entre eles uma aliança de ligação, uma conexão genuína e profunda nascida de um simples tropeço. 

A partir desse dia, o feio e o bonito passaram a se abordar regularmente construindo primeiramente uma amizade e, à depois, dando início aos contornos de um amor que desafiou todas as expectativas, ou seja, o útil se ajustou ao agradável. Às vezes, um embondo poderá ser a chave que abrirá a porta para algo incrivelmente mavioso e inesperado, como se o destino tivesse um plano próprio para unir almas dispersas, que, de outra forma, nunca se encontrariam. Carlos Eduardo e Maria Eliza se casaram em uma cerimônia simples, cheia, porém, de amor. A cidade inteira de Pedra do Sol (de ambos os lados da ponte), compareceu, testemunhando a união que desafiava padrões e preconceitos. 

O casal se tornou uma inspiração para os domiciliados, provando que o amor verdadeiro transcende as aparências. E a fisionomia, seja ela feia ou bonita, sempre vencerá aquelas pessoas que só veem por fora, desprezando o essencial que se encontra ocultado e no interior mais profundo de nosso âmago. Tiveram duas meninas, Rosa e Margarida. Herdaram a beleza física da mãe, igualmente a bondade e a simplicidade de Carlos Eduardo. Criar os filhos foi uma aventura diária. Maria Eliza, que antes se pegava assediada pelos casados e solteiros, devido a sua catadura de princesa, descobriu a verdadeira beleza nas pequenas alegrias de ser mãe e esposa. Ela se dedicou a ensinar às filhas a importância de amar as pessoas pelo que elas são, e não pelo que aparentavam ser. 

Carlos Eduardo, por sua vez, encontrou um rosário de razões para sorrir vendo as suas meninas crescerem e se transformarem em pessoas incríveis. A cidade de Pedra do Sol se inverteu também. Influenciados pela história daquele casal, onde o escroto e o sabável se fizeram irmanados, seus moradores, passaram a valorizar mais as gentilezas, as empatias e a verdadeira venustidade incandescente que residia no interior de cada ser humano. A história deles se espalhou, inspirando pessoas a acreditarem piamente no poder transformador do amor verdadeiro e na aceitação incondicional que flui com intensidade abrasante de dentro do mais incógnito adormecido em cada um de nós. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 13-12-2024

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