Henrique Pereira dos Santos
A propósito do meu post de ontem, acabei envolvido em discussões desagradáveis com pessoas que se
acham moralmente superioras e campeões do humanismo, como é frequente sempre
que se fala do Médio Oriente.
Acontece que a esmagadora
maioria do humanismo militante a propósito do Médio Oriente consiste, na
prática, em condenar milhões de pessoas a uma vida de inferno, dominada por
grupos armados sanguinários, financiados por Estados promotores do terrorismo e
que a ONU condena muito menos que a única democracia da região, Israel.
Para além de ser a única
democracia da região, um quinto da sua população tem origem árabe, enquanto as
comunidades judaicas da região, que eram muitas e muito distribuídas até ao fim
do império otomano, desapareceram todas dos sítios onde tinham as suas raízes
há séculos.
O resultado prático do
humanismo da ONU foi transformar 600 mil refugiados em cinco milhões, o que
seria o menos se houvesse qualquer horizonte de vida razoável para esses cinco
milhões de pessoas, só que não é assim, a ONU e a comunidade internacional não
oferecem a esses cinco milhões de pessoas qualquer horizonte de vida razoável,
preferindo continuar a insistir numa miragem de retorno a mundos e sítios que
já não existem (é irrelevante se esse processo histórico foi justo ou injusto,
a realidade nem sempre é justa e a persistência em mitos sobre mundos perfeitos
tem custado milhões de vidas, historicamente) e, com isso, transformando esses
cinco milhões de pessoas em reféns de grupos armados totalitários.
Ora, Trump veio dizer duas
coisas: precisamos de um horizonte de sustentabilidade económica e, para isso,
precisamos de permitir a estas pessoas refazerem as suas vidas noutro lado
qualquer.
Trump não falou de deslocações forçadas, nem de limpeza étnica, mas como é costume nele, fez um discurso hiperbólico e fanfarrão, que se presta a muitas interpretações.
Se a ONU e o seu
secretário-geral, quisessem preservar um mínimo dos mínimos de credibilidade
como árbitro imparcial, teria comentado a proposta realçando as suas
dificuldades práticas de execução, que são muitas, e clarificando que quaisquer
que fossem as opções, estaria sempre fora de causa qualquer deslocação forçada
de populações (embora, à ONU, e ao seu secretário-geral, não pareça incomodar
muito que dois milhões de pessoas, em Gaza, sejam reféns de um grupo armado
totalitário, que a ONU se recusa a classificar como um grupo terrorista).
Maria João Guimarães, uma
jornalista do Público que escreve sobre o médio oriente com o rigor e a isenção
com que Joana Gorjão Henriques escreve sobre a polícia ou Rafaela Burd Relvas
escreve sobre o mercado de habitação, tem uma peça, na quinta-feira, dia 6, em
que cita (não sei com que rigor) um antigo diplomata israelita.
"a falta total de
detalhes do plano: não há referência a questões legais: com base em que poder
ou autoridade podem os Estados Unidos tomar o controlo de Gaza? Logística: como
se recolocam 2 milhões de pessoas, a maioria das quais não quer sair? Política:
quem irá gerir o processo? Financeira: quem irá financiar esta tarefa
monumental? Regional: a maioria dos países árabes já rejeitou a ideia com
veemência."
São questões relevantes e
muito interessantes, mas são independentes da proposta de Trump, quaisquer que
sejam as decisões que se tomem sobre Gaza, não sabemos com que base ou
autoridade pode, seja quem for, tomar o controlo de Gaza (o que na prática significa
a manutenção do status quo, a tomada de 2 milhões de reféns por parte de um
grupo armado totalitário), não sabemos onde colocar os 2 milhões de habitantes
de Gaza (visto que o status quo é a manutenção de dois milhões de pessoas num
território sem qualquer viabilidade económica e social, a viver em condições
miseráveis sob o terror de um poder ilegítimo e brutal), não sabemos quem irá
gerir o processo, seja que processo for decidido, não sabemos quem irá
financiar a reconstrução de Gaza (nem muito menos sabemos como refazer uma base
económica sustentável nas condições atuais em que vivem aqueles 2 milhões de
reféns do Hamas) e sabemos, pelo
histórico, que os países árabes se opõem, desde há décadas, à integração de
palestinianos nas suas sociedades.
Ou seja, as dificuldades não
são da proposta de Trump, as dificuldades são da realidade.
O que é desumano não é admitir
que é bem melhor para todos que o máximo possível de pessoas possam refazer a
sua vida noutro lado qualquer (não sei onde vai o diplomata israelita buscar a
informação de que a maioria dos palestinianos não quer sair de onde está, mas
mesmo que seja verdade, continua a haver centenas de milhar de candidatos a ir
refazer a sua vida noutro lado qualquer, e são esses que devem ser apoiados a
fazê-lo, em vez de lhes cantar cânticos heroicos sobre a sua presença ancestral
num mundo que já não existe), o que é desumano é a piadola do representante da
Palestina na ONU, Riyad Mansour: "Para aqueles que querem enviar o povo
palestiniano para "um lugar simpático", permitam que possam voltar às
suas casas originais, onde é agora Israel", isto é, contrapondo uma coisa
que sabe ser completamente irrealista (nem os cinco milhões de refugiados,
sequer, cabem nas casas dos seiscentos mil refugiados originais, se se
pretender manter este registo de stand-up comedy) e cujo resultado prático está
à vista: cinco milhões de vítimas sem qualquer perspectiva de vida que não
passe pelo ingresso em grupos armados como forma de garantir a sua, e da sua
família, subsistência.
Se tudo o resto falhasse, se
não funcionasse nada do que é proposto seja por quem for, o facto é que se um
milhão de palestinianos tivesse a oportunidade de sair daquele inferno para
tentar ter uma vida normal noutro lado qualquer, se metade dessas tentativas
falhassem, isso significaria melhorar a vida de meio milhão de pessoas.
Isso sim, é humanismo, tudo o
resto é exibicionismo moral.
Título e Texto: Henrique
Pereira dos Santos, Corta-fitas,
8-2-2025
Uma proposta decente
How Hamas Plans To Foil Trump's Gaza Plan
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