domingo, 16 de fevereiro de 2025

[As danações de Carina] Dois esquisitões em busca do mesmo fim

Carina Bratt

A FÁTIMA ERA MUITO FEIA. Feia, mas tão feia que chegava a doer por dentro. E por fora também. Até pelos lados, se duvidasse. Quando se aproximava do espelho, sempre aconteciam duas coisas: ou o espelho se quebrava, ou fugia de medo, descendo escadas e abrindo portas, como um desembestado. Não dava para encarar a coitada, nem colocando uma toalha na cara, fazendo figa e gritando a frase conhecida da galera: ‘tudo pela pátria’.


Sem falar no corpo desproporcional: barriga grande, umbigo de marciano, culotes por todos os lados, pneus, peitos de vaca velha, bicos murchos, bunda amassada, cheia de celulites, pernas com varizes, uma verdadeira droga. E o treco do prazer, no meio das pernas? Dava desprazer. Além de cabeludo e sujo, falavam à língua solta que bichos peçonhentos passeavam de um lado para outro, a procura de alguma coisa mais sólida para se agarrarem.

Nem o capeta em figura de diabo, com seu par de chifres e tridente fumegante nas mãos gostaria de ter por perto aquela figura sombria, desproporcional, olhos esbugalhados, cheios de olheiras, os dentes cariados, não mencionando o bafo de onça com olheiras de Xuxa Meupastel. Bafo de onça com olheiras de Xuxa Meupastel, dizem os entendidos em onças e tigres (é um cheiro forte que derruba homens fortes e levantava defuntos podres das covas, quando abre a boca.) Coisa de Lúcifer, mesmo. Se sorria, nossa, se sorria dava a impressão de que um vendaval se altinhos e baixinhos se punham a caminho, fugindo da Casa Rosa.

Não havia viva alma que aturasse a sua presença inoportuna, suas frases mal colocadas, enrustidas num português montado a toque de vírgulas misturadas com interrogações e pontos finais desconexos. Verdade seja dita: a coitada tinha um coração do tamanho do mundo, mas de um mundo que era só seu, onde somente ela, com suas pieguices conseguia penetrar. De igual forma, carregava uma solidão doente, incurável, como um tumor maligno a corroer os recônditos da alma.

Era boa, isso ninguém nega. Extremamente prestativa e generosa. Gostava de ajudar a todos, como ‘mandava o homem lá de cima,’ sem distinção. Praticava a caridade vinte e quatro horas por dia. Tirava os pães da sua boca para dá-los aos outros. E como dava! Tinha quem se imbuísse de coragem, que se vestia de uma intrepidez valente e corajosa, tenaz e arrojada, e, de quando em vez, ou melhor, de quando em sempre, quebrava o galho. Como?

Havia um morador de rua oficial, o nome dele, Gustavo. Rapaz simpático, alegre, brincalhão, vinte e poucos anos, que pelas graças que ela fazia, bem entendido, pelos pães com manteiga e café todas as manhãs, ainda de lambuja recebia as marmitas no almoço e lanchinhos lá pelas vinte e duas, o rapaz devolvia todas essas graças e mimos, as regalias, e privilégios travando uma batalha feroz, fazendo um esforço... algo tipo assim, insofismável e hercúleo. Não, pelo amor de Deus, nada mais que umas branduras, ou trocas de comiserações, de gentilezas, de doçuras e sobretudo de afabilidades.

Resumindo, umas lisonjas, umas cortesias, uns deleites brandos que viravam clemências e bonomias. Gustavo, o pobre morador de rua, recebia por conta dos benfazejos da Fátima, banhos de chuveiro quente, roupas limpas e sapatos. Parou de comer baratas, de beber água empossada e se fartar de restos de detritos jogados num lixão próximo de onde dormia. Gustavo, indubitavelmente retribuía à altura. O mancebo não dava pontos sem nós. Naquela hora do bem bom, estendia uma toalha dentro da velha estação de trem, beijava a fuça da Fátima, fechava os olhos... e... sem nenhum escrúpulo ou nojo, a C O M I A. Nesse pega pra capar, ambos reviravam os olhinhos.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 16-2-2025

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