quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Intelectuais


Rafael Nogueira

O intelectual moderno herdou o púlpito de um clero que se viu esvaziado pela secularização. Subiu ao altar da imprensa, da universidade e do Estado com um credo sedutor: “Confie em mim. Sou a voz da ciência e sei o que é melhor para todos.” Em Intellectuals, Paul Johnson troca a reverência cega pela investigação rigorosa, perguntando-se “O que encontramos ao examinar a vida privada de quem se apresenta como guia moral da humanidade?” O resultado é um catálogo de incoerências: quanto mais sublime a promessa de salvação, maior a tentação de pisar em gente de carne e osso no caminho.

Rousseau é o paradigma. Amava a humanidade no atacado; no varejo, despachou os filhos para o orfanato. O pai tinha que dar lugar ao cidadão. Shelley seguiu pelo mesmo rumo, sempre pondo ideias acima de pessoas. Foi cruel com as esposas, e até com os filhos.

A filosofia “científica” de Marx permitia-lhe falar pelo proletariado enquanto vivia de mesadas de Engels, explorava a empregada Helene Demuth e tratava divergências como crimes. O padrão moral ficava no panfleto; na realidade, sobrava só fiado e opressão.

Tolstói, talvez o mais ambicioso, se dizia irmão mais velho de Deus. Pregava amor universal e praticava tirania doméstica, impondo à esposa a leitura de diários com confissões de luxúria e vício em jogos. Proclamava vida ascética vivendo como grande proprietário. Na política, desprezou reformas graduais em favor de utopias abruptas.

Hemingway falava de “graça sob pressão”. Nas frases, a verdade nua; fora delas, culto do exagero, invenção autobiográfica, crueldade com amigos e esposas. Seu código de honra serviu também para justificar apoios políticos ingênuos, como aos comunistas na Guerra Civil Espanhola.

Brecht dominou a arte de usar pessoas como objetos: harém de colaboradoras, apropriação de ideias alheias e reverência a ditaduras que bancavam seu teatro. O comunismo era menos fé que contrato de patrocínio.

Russell, gênio da lógica, tratava mulheres como variáveis descartáveis. Sua paradoxal incoerência o levava da defesa da guerra preventiva ao pacifismo absoluto. Sua tirania da lógica aplicada à alma – dos outros – gerava extremismo e justificava violência.

Sartre é o exemplo máximo do intelectual que, sem atos relevantes de resistência, tornou-se herói da Resistência Francesa e guru do “engajamento”. Publicou com autorização de censores alemães, enquanto outros, como Camus, arriscaram a vida. Sua biografia coleciona reverências a tiranos, de Moscou a Havana. Simone de Beauvoir manteve o “amor necessário” e a servidão doméstica enquanto ele multiplicava amores “contingentes” com jovens estudantes.

A exceção é Edmund Wilson. Seduzido pelo marxismo, foi ver de perto e voltou desiludido. Abandonou a utopia e retomou o ofício de homem de letras, preferindo nomes a slogans, fatos a teorias, pessoas à humanidade abstrata.

O tema de Johnson não é matéria de revista de fofoca, mas um exame de idoneidade. No serviço público e no mundo financeiro, grandes operações exigem certidões negativas. O intelectual moderno, porém, quer que lhe deem atestado de bom caráter sem apresentar a papelada. Quem diria: eis que alguma burocracia nesta vida é necessária.

O alerta final de Intellectuals é tipo conselho de mãe: “cuidado com quem promete muito; fica de olho nos que querem te salvar”. A experiência – russa, alemã, chinesa, cubana – ensina que laboratórios sociais pedem cobaias humanas, começando pela família do vizinho.

Concedo que o artista possa se permitir algumas contradições (quem sabe o gênio não dependa delas?); já o intelectual que se pretende cientista e se apresenta como guru da vida pública, não. Quem diz ter razão e quer impô-la deve, no mínimo, viver à altura dela. E, quando vida e ideias divergem, fiquemos com o que sempre funciona: bom senso, pé no chão e a velha cortesia de desconfiar de quem não faz o que prega, mesmo que seja um intelectual famoso.

Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 13-8-2025; Arte: Paulo Márcio

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