Rafael Nogueira
O intelectual moderno herdou o
púlpito de um clero que se viu esvaziado pela secularização. Subiu ao altar da
imprensa, da universidade e do Estado com um credo sedutor: “Confie em mim. Sou
a voz da ciência e sei o que é melhor para todos.” Em Intellectuals,
Paul Johnson troca a reverência cega pela investigação rigorosa, perguntando-se
“O que encontramos ao examinar a vida privada de quem se apresenta como guia
moral da humanidade?” O resultado é um catálogo de incoerências: quanto mais
sublime a promessa de salvação, maior a tentação de pisar em gente de carne e
osso no caminho.
Rousseau é o paradigma. Amava
a humanidade no atacado; no varejo, despachou os filhos para o orfanato. O pai
tinha que dar lugar ao cidadão. Shelley seguiu pelo mesmo rumo, sempre pondo
ideias acima de pessoas. Foi cruel com as esposas, e até com os filhos.
A filosofia “científica” de
Marx permitia-lhe falar pelo proletariado enquanto vivia de mesadas de Engels,
explorava a empregada Helene Demuth e tratava divergências como crimes. O
padrão moral ficava no panfleto; na realidade, sobrava só fiado e opressão.
Tolstói, talvez o mais
ambicioso, se dizia irmão mais velho de Deus. Pregava amor universal e
praticava tirania doméstica, impondo à esposa a leitura de diários com
confissões de luxúria e vício em jogos. Proclamava vida ascética vivendo como
grande proprietário. Na política, desprezou reformas graduais em favor de
utopias abruptas.
Hemingway falava de “graça sob
pressão”. Nas frases, a verdade nua; fora delas, culto do exagero, invenção
autobiográfica, crueldade com amigos e esposas. Seu código de honra serviu
também para justificar apoios políticos ingênuos, como aos comunistas na Guerra
Civil Espanhola.
Brecht dominou a arte de usar pessoas como objetos: harém de colaboradoras, apropriação de ideias alheias e reverência a ditaduras que bancavam seu teatro. O comunismo era menos fé que contrato de patrocínio.
Russell, gênio da lógica, tratava mulheres como variáveis descartáveis. Sua
paradoxal incoerência o levava da defesa da guerra preventiva ao pacifismo
absoluto. Sua tirania da lógica aplicada à alma – dos outros – gerava
extremismo e justificava violência.
Sartre é o exemplo máximo do
intelectual que, sem atos relevantes de resistência, tornou-se herói da
Resistência Francesa e guru do “engajamento”. Publicou com autorização de
censores alemães, enquanto outros, como Camus, arriscaram a vida. Sua biografia
coleciona reverências a tiranos, de Moscou a Havana. Simone de Beauvoir manteve
o “amor necessário” e a servidão doméstica enquanto ele multiplicava amores
“contingentes” com jovens estudantes.
A exceção é Edmund Wilson.
Seduzido pelo marxismo, foi ver de perto e voltou desiludido. Abandonou a
utopia e retomou o ofício de homem de letras, preferindo nomes a slogans, fatos
a teorias, pessoas à humanidade abstrata.
O tema de Johnson não é
matéria de revista de fofoca, mas um exame de idoneidade. No serviço público e
no mundo financeiro, grandes operações exigem certidões negativas. O
intelectual moderno, porém, quer que lhe deem atestado de bom caráter sem
apresentar a papelada. Quem diria: eis que alguma burocracia nesta vida é
necessária.
O alerta final de Intellectuals
é tipo conselho de mãe: “cuidado com quem promete muito; fica de olho nos que
querem te salvar”. A experiência – russa, alemã, chinesa, cubana – ensina que
laboratórios sociais pedem cobaias humanas, começando pela família do vizinho.
Concedo que o artista possa se
permitir algumas contradições (quem sabe o gênio não dependa delas?); já o
intelectual que se pretende cientista e se apresenta como guru da vida pública,
não. Quem diz ter razão e quer impô-la deve, no mínimo, viver à altura dela. E,
quando vida e ideias divergem, fiquemos com o que sempre funciona: bom senso,
pé no chão e a velha cortesia de desconfiar de quem não faz o que prega, mesmo
que seja um intelectual famoso.
Título e Texto: Rafael
Nogueira, O Dia, 13-8-2025; Arte: Paulo Márcio
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