terça-feira, 3 de setembro de 2013

Mapa do tesouro para nenhures

Helena Matos
Há vários meses que Portugal vive a olhar para aquelas linhas. Algures entre o misterioso e o profético, as curvas que Eduardo Batarda desenhou e que sob a forma de tapeçaria servem de fundo à Sala dos Actos do Tribunal Constitucional tornaram-se em 2013 no equivalente à mira técnica da RTP dos anos 70: à falta de programação na então única estação de televisão punhamo-nos a olhar para a mira técnica na esperança de que algo aparecesse. Bem lá no fundo sabíamos que não ia aparecer nada mas aquelas quadrículas pareciam encerrar um enigma que escapava ao nosso entendimento. Agora coube à tapeçaria de Batarda esse papel de mapa do tesouro para nenhures. Ou, numa versão menos televisiva, de livro das sibilas à espera que o saibamos desvendar.


Nas democracias os tribunais tal como as igrejas e as forças armadas representam valores que nos preservam do totalitarismo da política. Existe na política algo de vertiginoso - é sempre tudo urgente! - que, a não ser contrabalançado por outros protagonistas, pode deixar os povos mas mãos de meia dúzia de fanáticos. Nas ditaduras e respectivos processos revolucionários - os prec's não são de modo algum exclusivos da esquerda - este procedimento é evidente. Nas democracias é mais sofisticado mas não menos pernicioso: alguém recorda ainda o ritmo de lançamento dos programas que iam colocar Portugal sempre na vanguarda de qualquer coisa, mais as causas fracturantes dos casamentos, sem esquecer o tumulto constante com as cabalas urdidas pelos bota-abaixistas, tremendistas, derrotistas e todos os outros ‘istas' dos governos de Sócrates? Instituições que pelo seu espírito de continuidade contrabalancem a desmesura da política são portanto absolutamente necessárias. Mas tal como aos políticos também a essas instituições convém olhá-las com doses iguais de respeito e de cautela. Depois de décadas em que se discutiu a Igreja e depois as Forças Armadas, chegou a vez do Tribunal Constitucional.

Foto: Enric Vives-Rubio/Público
Este tribunal, até agora mediaticamente quase desconhecido, saltou para a ribalta. Impassível face ao ar embaraçado dos juízes, cuja impreparação para falar em público é evidente, ao negro das togas e ao frenesi dos jornalistas lá está a tapeçaria com aquelas curvas e contracurvas que num assomo de ironia parecem ir desenhando, ao ritmo da leitura dos acórdãos, ora as linhas do inferno num quadro de Bosch ora os labirintos impossíveis de Escher.

É claro que os juízes em Portugal têm sido mais sensíveis aos argumentos e à retórica, regra geral poderosa, dos governos de esquerda mas o Tribunal Constitucional é uma instituição marcada não tanto pela ideologia mas sobretudo pela sociologia. Estatista como não podia deixar de ser. Os juízes do TC ignoram, como aliás boa parte da nossa classe política, que o dinheiro não nasce por decreto e por simples inscrição numa alínea orçamental e sobretudo têm como modelo o Estado e não a sociedade. Logo o despedimento surge-lhes invariavelmente como uma violação de direitos do trabalhador; o valor das pensões não é o resultado de uma carreira contributiva mas sim um contrato que o Estado celebrou com os seus cidadãos mais velhos; identificaram durante anos o congelamento dos contratos de arrendamento celebrados entre particulares com o direito constitucional à habitação... É como se a sociedade, a economia e as empresas fossem uma espécie de desordem consentida mas moralmente diminuída perante os princípios e o modo de funcionamento do Estado e das suas instituições.

Quando dentro de algum tempo a realidade impuser aquilo que o TC agora rejeita outro acórdão será lido na Sala dos Actos. E no fundo dessa sala qual contraponto severo das figuras galantes e paisagens bucólicas que, em São Bento, servem de cenário aos primeiros-ministros na hora em que estes anunciam pedidos de ajuda externa e aumentos de impostos, a tapeçaria lá continuará pairando sobre as cabeças dos juízes. E olhando-nos provocadoramente de frente.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 03-9-2013

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