Há vários meses que Portugal vive a olhar para aquelas linhas. Algures
entre o misterioso e o profético, as curvas que Eduardo Batarda desenhou e que
sob a forma de tapeçaria servem de fundo à Sala dos Actos do Tribunal
Constitucional tornaram-se em 2013 no equivalente à mira técnica da RTP dos
anos 70: à falta de programação na então única estação de televisão punhamo-nos
a olhar para a mira técnica na esperança de que algo aparecesse. Bem lá no
fundo sabíamos que não ia aparecer nada mas aquelas quadrículas pareciam
encerrar um enigma que escapava ao nosso entendimento. Agora coube à tapeçaria de Batarda esse papel de mapa do tesouro
para nenhures. Ou, numa versão menos televisiva, de livro das sibilas à espera
que o saibamos desvendar.
Nas democracias os tribunais
tal como as igrejas e as forças armadas representam valores que nos preservam
do totalitarismo da política. Existe na política algo de vertiginoso - é sempre
tudo urgente! - que, a não ser contrabalançado por outros protagonistas, pode
deixar os povos mas mãos de meia dúzia de fanáticos. Nas ditaduras e
respectivos processos revolucionários - os prec's não são de modo algum
exclusivos da esquerda - este procedimento é evidente. Nas democracias é mais
sofisticado mas não menos pernicioso: alguém recorda ainda o ritmo de
lançamento dos programas que iam colocar Portugal sempre na vanguarda de
qualquer coisa, mais as causas fracturantes dos casamentos, sem esquecer o
tumulto constante com as cabalas urdidas pelos bota-abaixistas, tremendistas,
derrotistas e todos os outros ‘istas' dos governos de Sócrates? Instituições que
pelo seu espírito de continuidade contrabalancem a desmesura da política são
portanto absolutamente necessárias. Mas tal como aos políticos também a essas
instituições convém olhá-las com doses iguais de respeito e de cautela. Depois
de décadas em que se discutiu a Igreja e depois as Forças Armadas, chegou a vez
do Tribunal Constitucional.
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Foto: Enric Vives-Rubio/Público |
É claro que os juízes em
Portugal têm sido mais sensíveis aos argumentos e à retórica, regra geral
poderosa, dos governos de esquerda mas o Tribunal Constitucional é uma
instituição marcada não tanto pela ideologia mas sobretudo pela sociologia.
Estatista como não podia deixar de ser. Os juízes do TC ignoram, como aliás boa
parte da nossa classe política, que o dinheiro não nasce por decreto e por
simples inscrição numa alínea orçamental e sobretudo têm como modelo o Estado e
não a sociedade. Logo o despedimento surge-lhes invariavelmente como uma
violação de direitos do trabalhador; o valor das pensões não é o resultado de
uma carreira contributiva mas sim um contrato que o Estado celebrou com os seus
cidadãos mais velhos; identificaram durante anos o congelamento dos contratos
de arrendamento celebrados entre particulares com o direito constitucional à
habitação... É como se a sociedade, a economia e as empresas fossem uma espécie
de desordem consentida mas moralmente diminuída perante os princípios e o modo
de funcionamento do Estado e das suas instituições.
Quando dentro de algum tempo a
realidade impuser aquilo que o TC agora rejeita outro acórdão será lido na Sala
dos Actos. E no fundo dessa sala qual contraponto severo das figuras galantes e
paisagens bucólicas que, em São Bento, servem de cenário aos
primeiros-ministros na hora em que estes anunciam pedidos de ajuda externa e
aumentos de impostos, a tapeçaria lá continuará pairando sobre as cabeças dos
juízes. E olhando-nos provocadoramente de frente.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 03-9-2013
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