
"O Brasil está muito
feliz em receber todos nesta Copa porque somos um povo alegre e
acolhedor." Violência é a palavra da hora -e ela surge em curiosas
associações com a "Copa das Copas". A barbárie das torcidas do
Atlético Paranaense e do Vasco não foi deplorada por seus significados
intrínsecos, mas pelas mensagens que supostamente envia ao mundo. Gaiatos da
política, do marketing e do colunismo ensaiaram uma sentença que menciona a
violência "dentro e fora dos estádios". É senha, com endereço certo:
no saco fundo, cabem tanto os torcedores selvagens e os sumidos black blocs
quanto manifestantes pacíficos mas indignados com a "Copa das Copas".
O pau vai comer.
"Não repara a
bagunça" -o dístico popular nacional, candidato eterno, e perfeito, a
substituir o "Ordem e Progresso" no núcleo de nossa bandeira, trai o
medo da vergonha. Joseph Blatter entendeu e traduziu, chamando-nos a congelar a
indignação, sublimar as insatisfações, colocar entre parêntesis as divisões. A
unidade em torno de um bem maior, que é a imagem do país diante do planeta que
nos vê: eis a gramática do discurso político sugerida pelo chefão da potência ocupante.
No país da Copa, a convocação à unidade já foi integrada ao discurso da
publicidade. Será repetida à exaustão, como uma ladainha, até o apito final.
Não estrague a festa, estúpido!
"Será uma Copa para
ninguém esquecer", jactou-se a presidente, formulando uma ameaça
involuntária. A partir do Gabinete de Segurança Institucional, estrutura-se uma
operação de guerra que abrange as três forças em armas e um desdobrado aparato
cibernético. Nas telas dos computadores do sistema de vigilância, cada arena figura
como ponto focal de um envelope tridimensional de segurança. Nas ruas, o
controle físico do perímetro das arenas, a cargo das PMs, terá a missão de
proteger as marcas dos patrocinadores oficiais da ameaça simbólica representada
pela presença de manifestantes. Jamais, em tempo algum, o Estado serviu tão
direta e exclusivamente a interesses privados. Não: ninguém esquecerá.
O país da Copa não se
respeita. Ontem, o partido do governo celebrou políticos condenados por
corrupção -e, sob o silêncio cúmplice do presidente de facto e da presidente de
direito, achincalhou um STF composto por juízes que eles mesmos indicaram. O
país da Copa perdeu o autorrespeito. Os líderes governistas manobram para o
Congresso não ouvir um ex-secretário nacional de Justiça que acusa o governo ao
qual serviu de operar uma fábrica de dossiês contra adversários políticos. O
país da Copa perdeu o respeito. As lideranças do PSDB preferem empregar táticas
diversionistas vexatórias a colher assinaturas para uma CPI destinada a investigar
todos os contratos estaduais e federais firmados com a Siemens. Yes, nós
gostamos de futebol.
No vale-tudo da nova ordem do
racialismo, perdemos, ademais, um senso básico de decoro: eu li -aqui mesmo,
não nas catacumbas da internet!- que Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert formaram
"um casal mais parecido com representantes de afrikâners". Cores,
rancores. No país da Copa, nativos felizes, contentes, de bunda de fora,
tocavam caxirola. Foi bonita a festa, pá -pena que nem começou.
Título e Texto: Demétrio
Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista em política
internacional. Escreveu, entre outros livros, "Gota de Sangue - História
do Pensamento Racial" (ed. Contexto) e "O Leviatã Desafiado"
(ed. Record). Escreve aos sábados.
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