sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Eu, neoliberal e fanático, me confesso…

José Manuel Fernandes
O esforço para transformar toda a divergência política em temas de fanáticos extremistas só beneficia os verdadeiros extremistas.

Obama é comunista? A ideia é tão absurda que o simples facto de alguns militantes do Tea Party a alimentarem é suficiente para, em Portugal, os desconsiderar como perigosos lunáticos. No entanto, ao mesmo tempo que somos severos com os termos dessas distantes discussões, aceitamos com naturalidade que no nosso país se tenha reduzido o debate político e de ideias à mais grotesca caricatura. Não me refiro aos insultos, que se tornaram banais e sobre os quais já escrevi várias vezes, mas à estigmatização de tudo o que diverge do consenso socialista como um sinal de fanatismo ou de extremismo.

É sabido que, em política, desconsiderar os adversários é uma arma poderosa. Mais: há sempre a tentativa de os apresentar como gente desfasada da realidade e do sentimento comum. Até aqui estamos dentro do tolerável. Esperamos, por exemplo, que o PSD procure apresentar o PS como demasiado encostado à esquerda e o PS descreva o PSD como excessivamente inclinado para a direita. Mas há limites. Por mais que se discorde de Mário Soares, por exemplo, não é razoável apresentá-lo como um revolucionário ou como um comunista, por muito que na Aula Magna ele se tenha misturado com revolucionários e comunistas. Estranhamente já parece ser aceitável, e é até visto com naturalidade nos meios de comunicação, que se diga da actual maioria que é extremista.

Vejamos, por exemplo, o que tem escrito neste mesmo jornal um político reformista, apóstolo da moderação e do diálogo, como é Francisco Assis. Para ele este Governo é “ultraliberal”, a maioria padece de “extremismo ideológico”, é mesmo uma “direita extremista e neoliberal” para quem a austeridade não é um mal necessário mas um objectivo “punitivo”. Eu sei que algumas destas acusações tornaram-se tão comuns que hoje são aceites como mainstream. Assis não faz mais do que repetir o que imensa gente diz. Mas faz mal: alguém que procura interpretar a realidade com alguma coerência ideológica e programática não pode tornar uma parte dessa realidade numa caricatura grotesca.

Já sabemos qual o insulto preferido pela esquerda: é acusar tudo e todos de neoliberalismo. É um insulto que é uma demissão de qualquer forma de pensamento. Já fiz o teste muitas vezes e ele, como o do algodão, nunca falha: basta perguntar a quem vocifera contra o neoliberalismo que defina neoliberalismo para esse alguém embatucar ou, em alternativa, despejar uma série de banalidades sem sentido. Não me vou alongar sobre este tema, que daria pano para mangas, antes colocar uma questão simples: pode este Governo ser definido como “ultraliberal” ou mesmo apenas “liberal”? Se quisermos ser sérios só podemos dar uma resposta: não. Este Governo é apenas menos iliberal do que tem sido regra em Portugal, uma regra com raízes antigas, pois o estatismo, o centralismo e a dependência do Estado são parte integrante da cultura política lusitana há muitas décadas, para não falar em séculos.

Um Governo que procede a um “enorme aumento de impostos” não pode ser considerado “ultraliberal”. Um Governo que aumenta o peso da despesa social do Estado (passou de 22% do PIB em 2010 para 23,2% em 2013) não pode ser definido como “extremista de direita”. Um Governo que ainda não completou a lista de privatizações acordada com a troika pelo anterior Governo socialista (falta a TAP e as seguradoras da CGD) não pode ser apelidado de “fanático”. Um Governo que tem gerido esta crise sem um aumento gritante das desigualdades (a percentagem da população em risco de pobreza ou exclusão social até passou de 26% em 2008, antes da crise, para 25,3% em 2012) não pode ser descartado como “insensível”. Um Governo que só ao fim de dois anos e meio apresentou um guião da “reforma do Estado” onde, de forma muitíssimo tímida, se questionam alguns dos actuais limites à separação entre público e privado não pode ser visto como formado por empedernidos discípulos de Hayek.

Poderia continuar a dar exemplos, indo ministério a ministério, mostrando como se continuam a emitir directivas e a criar regulamentos, como se continua a gerir o Estado de forma centralizada e napoleónica ou de como não são raras as cedências a interesses corporativos. A “agenda liberal” desta maioria é apenas uma agenda menos estatista e, sobretudo, menos afeiçoada a alguns poderes enquistados na administração pública do que a dos governos anteriores.

Tenho-o escrito várias vezes e volto a repeti-lo: o Governo tinha obrigação de, desde o início, ter clarificado aquilo ao que vinha. Que não queria acabar com o Estado, antes diminuir a sua receita até ao nível de receitas suportadas pelos contribuintes. Que a sua política de crescimento económico era não ter as políticas “de investimento” que tinham fracassado estrondosamente. Ou que devolver poder aos cidadãos, e mais capacidade para influenciarem directamente os serviços públicos, não era destruir o Estado social, mas construir o Estado social do século XXI. Por falta de convicção ou de visão, nunca o Governo foi capaz de assumir este discurso, preferindo justificar as medidas com a necessidade de ajustamento e os acordos com a troika. O Governo nunca disse, por exemplo, que não competia ao Estado ter estaleiros navais como os de Viana do Castelo, preferindo embrulhar-se num jogo de passa-culpas condenado ao insucesso.

Mas as omissões, ou erros, ou o que quiserem, da comunicação do Governo, não são justificação para o tipo de mistificações que se tornaram na “verdade revelada” do debate público. Aí o que se visa é algo diferente: é criar territórios interditos, é delimitar o que pode ou não pode ser debatido, fazendo depender a sua aceitabilidade do que os polícias do politicamente correcto toleram. Vou dar apenas dois exemplos. Um é o tema da liberdade de escolha em Educação, um assunto que tem o condão de suscitar todas as indignações da esquerda, que procura circunscrever o debate à dicotomia escola pública, escola privada, estigmatizando as privadas. Na verdade a liberdade de escolha até começa por se poder optar entre escolas públicas, ou escolas da rede pública com gestão diferenciada. Fazem-no, dizem, em nome da “igualdade” quando, na verdade, a desigualdade existente entre escolas públicas é já hoje muito maior do que a existente entre escolas públicas e privadas.

Outra vertente desta campanha para condicionar o debate e intimidar os adversários é o ataque pessoal a quem nem sequer se conhece, como recentemente aconteceu com Bruno Maçães, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Um militante assumido da esquerda radical, Daniel Oliveira, ex-militante do PCP, ex-Política XXI, quase ex-Bloco de Esquerda e promotor de manifestos 3D, tratou de o apelidar, para gáudio da tribo, de “imberbe fanático” apenas porque não defendeu uma aliança dos países do Sul contra a Alemanha. Lançada a onda, foi depois atacado porque talvez nem andasse de transportes públicos, uma frase de belo efeito que não se deixava incomodar pela realidade, pois Bruno Maçães, pelo menos enquanto foi assessor do primeiro-ministro, até vinha todos os dias de comboio de Cascais para Lisboa. O exemplo é caricato e até irrelevante, mas revelador: ninguém discutiu a entrevista que Bruno Maçães deu ao Sol, muito menos o que realmente disse numa conferência em Atenas, mas correram rios de tinta por um jornalista grego lhe ter chamado “alemão”.

É assim que estamos. Francisco Assis, que tanto se queixa, e com tanta razão, por uma parte da esquerda se ter reduzido ao simplismo proclamatório, acaba, com a sua linha argumentativa, por ser cúmplice de uma simplificação dos termos do debate público que, se hoje dificulta acordos alargados ao centro (felizmente o acordo sobre o IRC foi excepção), no futuro tornará um inferno a vida da esquerda que governa. É que para os Tavares e Oliveiras deste mundo Assis não passa, também ele, de um “neoliberal”.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Público, 20-12-2013

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