O esforço para transformar toda a divergência política em temas de
fanáticos extremistas só beneficia os verdadeiros extremistas.
Obama é comunista? A ideia é
tão absurda que o simples facto de alguns militantes do Tea Party a alimentarem
é suficiente para, em Portugal, os desconsiderar como perigosos lunáticos. No
entanto, ao mesmo tempo que somos severos com os termos dessas distantes
discussões, aceitamos com naturalidade que no nosso país se tenha reduzido o
debate político e de ideias à mais grotesca caricatura. Não me refiro aos
insultos, que se tornaram banais e sobre os quais já escrevi várias vezes, mas
à estigmatização de tudo o que diverge do consenso socialista como um sinal de
fanatismo ou de extremismo.
É sabido que, em política,
desconsiderar os adversários é uma arma poderosa. Mais: há sempre a tentativa
de os apresentar como gente desfasada da realidade e do sentimento comum. Até
aqui estamos dentro do tolerável. Esperamos, por exemplo, que o PSD procure
apresentar o PS como demasiado encostado à esquerda e o PS descreva o PSD como
excessivamente inclinado para a direita. Mas há limites. Por mais que se
discorde de Mário Soares, por exemplo, não é razoável apresentá-lo como um
revolucionário ou como um comunista, por muito que na Aula Magna ele se tenha
misturado com revolucionários e comunistas. Estranhamente já parece ser
aceitável, e é até visto com naturalidade nos meios de comunicação, que se diga
da actual maioria que é extremista.
Vejamos, por exemplo, o que
tem escrito neste mesmo jornal um político reformista, apóstolo da moderação e
do diálogo, como é Francisco Assis. Para ele este Governo é “ultraliberal”, a maioria
padece de “extremismo ideológico”, é mesmo uma “direita extremista e
neoliberal” para quem a austeridade não é um mal necessário mas um objectivo
“punitivo”. Eu sei que algumas destas acusações tornaram-se tão comuns que hoje
são aceites como mainstream. Assis não faz mais do que repetir o que imensa
gente diz. Mas faz mal: alguém que procura interpretar a realidade com alguma
coerência ideológica e programática não pode tornar uma parte dessa realidade
numa caricatura grotesca.
Já sabemos qual o insulto
preferido pela esquerda: é acusar tudo e todos de neoliberalismo. É um insulto
que é uma demissão de qualquer forma de pensamento. Já fiz o teste muitas vezes
e ele, como o do algodão, nunca falha: basta perguntar a quem vocifera contra o
neoliberalismo que defina neoliberalismo para esse alguém embatucar ou, em
alternativa, despejar uma série de banalidades sem sentido. Não me vou alongar
sobre este tema, que daria pano para mangas, antes colocar uma questão simples:
pode este Governo ser definido como “ultraliberal” ou mesmo apenas “liberal”?
Se quisermos ser sérios só podemos dar uma resposta: não. Este Governo é apenas
menos iliberal do que tem sido regra em Portugal, uma regra com raízes antigas,
pois o estatismo, o centralismo e a dependência do Estado são parte integrante
da cultura política lusitana há muitas décadas, para não falar em séculos.
Um Governo que procede a um
“enorme aumento de impostos” não pode ser considerado “ultraliberal”. Um
Governo que aumenta o peso da despesa social do Estado (passou de 22% do PIB em
2010 para 23,2% em 2013) não pode ser definido como “extremista de direita”. Um
Governo que ainda não completou a lista de privatizações acordada com a troika
pelo anterior Governo socialista (falta a TAP e as seguradoras da CGD) não pode
ser apelidado de “fanático”. Um Governo que tem gerido esta crise sem um
aumento gritante das desigualdades (a percentagem da população em risco de
pobreza ou exclusão social até passou de 26% em 2008, antes da crise, para
25,3% em 2012) não pode ser descartado como “insensível”. Um Governo que só ao
fim de dois anos e meio apresentou um guião da “reforma do Estado” onde, de
forma muitíssimo tímida, se questionam alguns dos actuais limites à separação
entre público e privado não pode ser visto como formado por empedernidos
discípulos de Hayek.
Poderia continuar a dar
exemplos, indo ministério a ministério, mostrando como se continuam a emitir
directivas e a criar regulamentos, como se continua a gerir o Estado de forma
centralizada e napoleónica ou de como não são raras as cedências a interesses
corporativos. A “agenda liberal” desta maioria é apenas uma agenda menos
estatista e, sobretudo, menos afeiçoada a alguns poderes enquistados na
administração pública do que a dos governos anteriores.
Tenho-o escrito várias vezes e
volto a repeti-lo: o Governo tinha obrigação de, desde o início, ter
clarificado aquilo ao que vinha. Que não queria acabar com o Estado, antes
diminuir a sua receita até ao nível de receitas suportadas pelos contribuintes.
Que a sua política de crescimento económico era não ter as políticas “de
investimento” que tinham fracassado estrondosamente. Ou que devolver poder aos
cidadãos, e mais capacidade para influenciarem directamente os serviços
públicos, não era destruir o Estado social, mas construir o Estado social do
século XXI. Por falta de convicção ou de visão, nunca o Governo foi capaz de
assumir este discurso, preferindo justificar as medidas com a necessidade de
ajustamento e os acordos com a troika. O Governo nunca disse, por exemplo, que
não competia ao Estado ter estaleiros navais como os de Viana do Castelo,
preferindo embrulhar-se num jogo de passa-culpas condenado ao insucesso.
Mas as omissões, ou erros, ou
o que quiserem, da comunicação do Governo, não são justificação para o tipo de
mistificações que se tornaram na “verdade revelada” do debate público. Aí o que
se visa é algo diferente: é criar territórios interditos, é delimitar o que
pode ou não pode ser debatido, fazendo depender a sua aceitabilidade do que os polícias
do politicamente correcto toleram. Vou dar apenas dois exemplos. Um é o tema da
liberdade de escolha em Educação, um assunto que tem o condão de suscitar todas
as indignações da esquerda, que procura circunscrever o debate à dicotomia
escola pública, escola privada, estigmatizando as privadas. Na verdade a
liberdade de escolha até começa por se poder optar entre escolas públicas, ou
escolas da rede pública com gestão diferenciada. Fazem-no, dizem, em nome da
“igualdade” quando, na verdade, a desigualdade existente entre escolas públicas
é já hoje muito maior do que a existente entre escolas públicas e privadas.
Outra vertente desta campanha
para condicionar o debate e intimidar os adversários é o ataque pessoal a quem
nem sequer se conhece, como recentemente aconteceu com Bruno Maçães, o
secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Um militante assumido da esquerda
radical, Daniel Oliveira, ex-militante do PCP, ex-Política XXI, quase ex-Bloco
de Esquerda e promotor de manifestos 3D, tratou de o apelidar, para gáudio da
tribo, de “imberbe fanático” apenas porque não defendeu uma aliança dos países
do Sul contra a Alemanha. Lançada a onda, foi depois atacado porque talvez nem
andasse de transportes públicos, uma frase de belo efeito que não se deixava incomodar
pela realidade, pois Bruno Maçães, pelo menos enquanto foi assessor do
primeiro-ministro, até vinha todos os dias de comboio de Cascais para Lisboa. O
exemplo é caricato e até irrelevante, mas revelador: ninguém discutiu a
entrevista que Bruno Maçães deu ao Sol, muito menos o que realmente disse numa
conferência em Atenas, mas correram rios de tinta por um jornalista grego lhe
ter chamado “alemão”.
É assim que estamos. Francisco
Assis, que tanto se queixa, e com tanta razão, por uma parte da esquerda se ter
reduzido ao simplismo proclamatório, acaba, com a sua linha argumentativa, por
ser cúmplice de uma simplificação dos termos do debate público que, se hoje
dificulta acordos alargados ao centro (felizmente o acordo sobre o IRC foi
excepção), no futuro tornará um inferno a vida da esquerda que governa. É que
para os Tavares e Oliveiras deste mundo Assis não passa, também ele, de um
“neoliberal”.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Público,
20-12-2013
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