terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O horror às reformas e o charme da revolução

Helena Matos
Interrogo-me às vezes se no caminho que os levava da prisão até à guilhotina algum dos muitos políticos condenados à morte pela Revolução Francesa pensou em Turgot.

Sobretudo no apoio que não lhe deram quando esse ministro de Luís XVI tentou reformar o estado francês, acabar com o proteccionismo, libertar os camponeses do sistema feudal...

Turgot acabou o seu desempenho governativo contestado por todos: o clero não queria perder privilégios, os comerciantes não queriam perder as garantias, os aristocratas não queriam perder as rendas. Até os irmãos do rei financiavam panfletos contra o ministro que no seu ímpeto reformista ameaçava o doce viver de Versalhes. Parecia não haver cidadão francês que não se quisesse ver livre de Turgot. E sobretudo não se encontrava um que o defendesse. Por fim aconteceu o que tinha de acontecer: Luis XVI dispensou Turgot substituindo-o por um ministro contra o qual ninguém conspirou pois até criou a Lotaria e naturalmente agravou o deficit.



Pouco depois muitos daqueles que tanto tinham contestado a tentativa de saneamento das contas públicas por parte de Turgot não só já tinham perdido tudo como nem a sua própria vida conseguiam salvar: milhares acabaram na guilhotina, outros foram simplesmente massacrados, ou afogados como sucedeu em Nantes, em Dezembro de 1793. A situação económica e financeira da França, essa, claro, continuava a agravar-se mas esse até era o menor dos males face a um poder que governava pelo Terror. Afinal uma das grandes lições das revoluções é que aqueles que a mais pequena mudança indigna aquando da tentativa conservadora de uma reforma, passam a aceitar tudo mal chega o período revolucionário. Portugal, que tem a França e a respectiva revolução por modelo, ilustra esta tese à exaustão: nas reformas tudo nos indigna. Nas revoluções ou, pior ainda, no declínio tudo aceitamos. Num país cujas elites à semelhança dos irmãos de Luís XVI não querem mudar coisa alguma incensam-se os revolucionários que entre disparates e folclores não mudam nada e afastam-se os reformistas que sempre podiam mudar alguma coisa.

Esta incapacidade para negociar reformas é o nosso maior drama: no marcelismo gorou-se o processo reformista porque o Ultramar era intangível. Depois acabou-se com o Ultramar em seis meses. Os militares portugueses passaram a combater entre si mesmos e em África o balanço oscilava entre a tragédia e o crime. Mas valha a verdade que em Portugal podia acusar-se muita gente de ter perdido o juízo mas ninguém de ter perdido a credibilidade em tentativas reformistas.

Depois ficámos com uma Constituição que parece copiada da do Azerbeijão dos tempos da defunta URSS mas não a podemos alterar porque para tal tem de se negociar. E em Portugal prefere-se a subversão à negociação. Assim torpedeia-se a Constituição ou mais perversamente ainda transforma-se o Tribunal Constitucional numa espécie de parlamento não eleito e com poder de veto, o que é mais de meio caminho andado para dar cabo de uma instituição.

Como, para não sairmos da matriz francesa, percebeu o malogrado Luís XVI. Isto não vai acabar bem para o TC e muito menos para o parlamento: provavelmente iremos assistir a uma tentativa de presidencialização do regime que no seu messianismo só agravará os nossos problemas. Mas o esfrangalhar das instituições inquieta bem menos a pátria do que uma tentativa falhada de negociação.

Por fim endividámo-nos de tal modo que, em menos de quarenta anos, por três vezes tivemos de pedir que nos emprestassem dinheiro para assegurar o dia-a-dia das despesas estatais. Mas todas as tentativas de colocar um mínimo de ordem na crescente despesa pública acabaram com os reformistas transformados em alvo de consensuais condenações e sem que ninguém naquele momento os defenda. Posteriormente, tal como sucedeu com Turgot, fazem-lhes grandes elogios. Mas aí já é tarde. Tal como agora, mais uma vez, começa a ser tarde. A nossa Versalhes doméstica está farta e cansada de tanta austeridade. Os comités revolucionários fazem a festa do costume e pedem cabeças.

Os bons burgueses querem a habitualidade. O que nos vai acontecer? Uma Revolução? Não. A nós não nos espera nenhuma barcaça para afogamentos no Tejo, nem guilhotinas no Terreiro do Paço e mesmo a reconversão do Campo Pequeno em praça de fuzilamentos levanta sérios problemas, como se viu em 1975. Não, a nós só nos espera a ruína e muita demagogia porque como a natureza do povo e o Estado Social nos poupam desta vez aos excessos da Revolução passamos logo directamente da tentativa falhada de reforma para a fase do declínio. O nosso próximo sobressalto será chamarmos de novo a ‘troika'.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 17-12-2013

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