Interrogo-me às vezes se no caminho que os levava da prisão até à
guilhotina algum dos muitos políticos condenados à morte pela Revolução
Francesa pensou em Turgot.

Turgot
acabou o seu desempenho governativo contestado por todos: o clero não queria
perder privilégios, os comerciantes não queriam perder as garantias, os
aristocratas não queriam perder as rendas. Até os irmãos do rei financiavam
panfletos contra o ministro que no seu ímpeto reformista ameaçava o doce viver
de Versalhes. Parecia não haver cidadão francês que não se quisesse ver livre
de Turgot. E sobretudo não se encontrava um que o defendesse. Por fim aconteceu
o que tinha de acontecer: Luis XVI dispensou Turgot substituindo-o por um
ministro contra o qual ninguém conspirou pois até criou a Lotaria e
naturalmente agravou o deficit.
Pouco depois muitos daqueles que tanto tinham contestado a tentativa de saneamento das contas públicas por parte de Turgot não só já tinham perdido tudo como nem a sua própria vida conseguiam salvar: milhares acabaram na guilhotina, outros foram simplesmente massacrados, ou afogados como sucedeu em Nantes, em Dezembro de 1793. A situação económica e financeira da França, essa, claro, continuava a agravar-se mas esse até era o menor dos males face a um poder que governava pelo Terror. Afinal uma das grandes lições das revoluções é que aqueles que a mais pequena mudança indigna aquando da tentativa conservadora de uma reforma, passam a aceitar tudo mal chega o período revolucionário. Portugal, que tem a França e a respectiva revolução por modelo, ilustra esta tese à exaustão: nas reformas tudo nos indigna. Nas revoluções ou, pior ainda, no declínio tudo aceitamos. Num país cujas elites à semelhança dos irmãos de Luís XVI não querem mudar coisa alguma incensam-se os revolucionários que entre disparates e folclores não mudam nada e afastam-se os reformistas que sempre podiam mudar alguma coisa.
Esta incapacidade para
negociar reformas é o nosso maior drama: no marcelismo gorou-se o processo
reformista porque o Ultramar era intangível. Depois acabou-se com o Ultramar em
seis meses. Os militares portugueses passaram a combater entre si mesmos e em
África o balanço oscilava entre a tragédia e o crime. Mas valha a verdade que
em Portugal podia acusar-se muita gente de ter perdido o juízo mas ninguém de
ter perdido a credibilidade em tentativas reformistas.
Depois ficámos com uma
Constituição que parece copiada da do Azerbeijão dos tempos da defunta URSS mas
não a podemos alterar porque para tal tem de se negociar. E em Portugal
prefere-se a subversão à negociação. Assim torpedeia-se a Constituição ou mais
perversamente ainda transforma-se o Tribunal Constitucional numa espécie de
parlamento não eleito e com poder de veto, o que é mais de meio caminho andado
para dar cabo de uma instituição.
Como, para não sairmos da
matriz francesa, percebeu o malogrado Luís XVI. Isto não vai acabar bem para o
TC e muito menos para o parlamento: provavelmente iremos assistir a uma
tentativa de presidencialização do regime que no seu messianismo só agravará os
nossos problemas. Mas o esfrangalhar das instituições inquieta bem menos a
pátria do que uma tentativa falhada de negociação.
Por fim endividámo-nos de tal
modo que, em menos de quarenta anos, por três vezes tivemos de pedir que nos
emprestassem dinheiro para assegurar o dia-a-dia das despesas estatais. Mas
todas as tentativas de colocar um mínimo de ordem na crescente despesa pública
acabaram com os reformistas transformados em alvo de consensuais condenações e
sem que ninguém naquele momento os defenda. Posteriormente, tal como sucedeu
com Turgot, fazem-lhes grandes elogios. Mas aí já é tarde. Tal como agora, mais
uma vez, começa a ser tarde. A nossa Versalhes doméstica está farta e cansada
de tanta austeridade. Os comités revolucionários fazem a festa do costume e
pedem cabeças.
Os bons burgueses querem a
habitualidade. O que nos vai acontecer? Uma Revolução? Não. A nós não nos
espera nenhuma barcaça para afogamentos no Tejo, nem guilhotinas no Terreiro do
Paço e mesmo a reconversão do Campo Pequeno em praça de fuzilamentos levanta
sérios problemas, como se viu em 1975. Não, a nós só nos espera a ruína e muita
demagogia porque como a natureza do povo e o Estado Social nos poupam desta vez
aos excessos da Revolução passamos logo directamente da tentativa falhada de
reforma para a fase do declínio. O nosso próximo sobressalto será chamarmos de
novo a ‘troika'.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 17-12-2013
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