terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Primeiro sequestro de um navio de toda a História

Abordagem nas Caraíbas


A tomada do paquete Santa Maria por um comando oposicionista, em janeiro de 1961, deixou o mundo em suspenso.

Luís Almeida Martins



 
 




Portugal ficou de boca aberta na manhã de 23 de janeiro de 1961. Os circunspectos jornais de Lisboa e do Porto noticiavam com um destaque inusitado que o paquete Santa Maria, da Companhia Colonial de Navegação, gémeo do Vera Cruz e orgulho da marinha mercante nacional, fora vítima de um ato de pirataria. Bastava continuar a ler para se perceber nas entrelinhas que afinal os “piratas” não eram flibusteiros como o lendário capitão Morgan (embora o cenário do assalto tenha sido o mar das Caraíbas), mas sim combatentes pela liberdade, inimigos do regime salazarista que tinham tomado conta do navio, desviando-o da rota, numa ação de propaganda de grande efeito contra a mais antiga ditadura da Europa ocidental. Claro que os jornais não o diziam assim, mas era o que se depreendia se limpássemos os textos da adjetivação furiosa.

Mas não foi só Portugal que ficou surpreendido. O mundo inteiro parou para refletir um pouco. Tratava-se do primeiro desvio de um navio por motivos políticos de toda a História. A grande imprensa internacional cobriu o acontecimento e a Paris-Match enviou um repórter a bordo. O paquete partira de Lisboa no dia 9, para mais uma das suas viagens regulares aos portos do Caribe. Os rebeldes, portugueses e espanhóis, pertenciam ao Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL) e lutavam contra ambas as ditaduras peninsulares: a salazarista e a franquista. Na sua maioria tinham embarcado a 21 no porto venezuelano de La Guaira, mas Henrique Galvão, o líder português, só o fizera no dia seguinte em Curaçau. A ideia era inverterem a marcha do navio, que se dirigia a Miami, e fazê-lo cruzar o Atlântico até à antiga possessão espanhola de Fernando Pó (hoje a parte insular da Guiné Equatorial), onde se apoderariam de uma ou duas canhoneiras com as quais atacariam Luanda, estabelecendo um governo provisório em Angola. Ideia louca? Pelo menos quixotesca. Por isso os rebeldes lhe chamaram Operação Dulcineia, em atenção à “dama” pela qual se batia o engenhoso fidalgo da Mancha.

Ao apoderarem-se do navio, cujo nome mudariam para Santa Liberdade, os homens do DRIL precipitaram-se e houve alguns feridos e um morto – o piloto João Nascimento Costa, depois feito herói pelo regime. Salazar apelara entretanto aos aliados para darem caça ao navio, e a Marinha americana localizá-lo-ia no dia 25. Mas o recém-empossado presidente John Kennedy sabia que a ação era de política interna. 

Na sequência de desentendimentos entre os portugueses e espanhóis do comando, o plano inicial acabaria no entanto por cair e o navio aportou em Recife, onde foram discutidas com as autoridades brasileiras e a Marinha dos EUA as condições do desembarque de ativistas e passageiros.

Quando, dias depois, o Santa Maria (ex-Santa Liberdade) regressou a Lisboa, Salazar proferiu no Cais de Alcântara o mais longo discurso de improviso da sua crónica política: “Portugueses, o Santa Maria está entre nós.”

O Santa Maria chegando a Lisboa em 16 de fevereiro de 1961. Foto daqui.
Haveria de ser também a oposição portuguesa a Salazar a fazer o primeiro desvio de um avião comercial, em novembro desse mesmo ano de 1961.
Texto: Luís Almeida Martins, in “365 DIAS com histórias da HISTÓRIA de PORTUGAL”, páginas 461/462 
Título e Digitação: JP

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