João César das Neves
A pobreza é um inimigo muito
antigo, experiente e manhoso. Apesar de o desenvolvimento ter destruído a
secular miséria endémica, ela ressurge em novas formas, permanecendo muito
perigosa. Acima de tudo, inclui sempre subtilezas e ambiguidades que enganam muita
gente. Por isso, várias das medidas para apoiar os necessitados, feitas nas
melhores intenções, falham os objectivos, até agravando o sofrimento. Recentes
discussões mostram a dificuldade.
As propostas de subida do
salário mínimo são um bom exemplo. Os políticos gostam desse indicador porque é
a única benesse barata. Aumentar pensões ou subsídios repercute-se
dolorosamente nas contas públicas. Mas o Estado não gasta um cêntimo de salário
mínimo, ficando com o mérito à borla. Quem suporta a despesa são empresas, boa
parte delas pequenas e frágeis.
Qual o efeito dessa subida?
Para os trabalhadores que permanecem, o resultado é óptimo. Mas que acontece
aos que saem? Afinal o salário mínimo é a proibição legal de todos os empregos
que paguem menos. Aumentá-lo destrói inevitavelmente postos de trabalho que,
mesmo maus, ocupam e alimentam muita gente que dificilmente encontra
alternativa. Os estudos mostram que os que perdem são os mais fragilizados,
jovens, mulheres, desqualificados, etc. O impacto é pois complexo e os custos
têm de ser considerados. Tudo isto recomenda que não se mexa no valor de ânimo
leve. Mas no calor do debate não se pára para pensar.
Aqui junta-se outro elemento
decisivo: a taxa de desemprego em Portugal das pessoas sem qualquer qualificação
costumava ser a mais baixa de todos os escalões educativos, por vezes menos de
metade do valor global. Desde 2009 ela tem subido mais do que todas as outras e
está já quase dois pontos percentuais acima da média nacional. Impor rigidez
legal nestas condições é ignorância criminosa.
A pobreza é um problema muito
sério e profundo. Por isso, uma das coisas que mais espanta é a ligeireza com
que tantos, cheios de preocupação e benevolência, tratam o tema. Reagem a
quente, repetem chavões genéricos, insultam e atacam, mal se incomodando em
olhar para a realidade.
Por exemplo, afirmar que a
maioria dos pensionistas não são pobres levantou enorme celeuma. Isso só pode
significar que há muita gente, mesmo séria, eminente e de boa-fé, que acha que
a maioria dos pensionistas é pobre. De onde tirou essa ideia? Certamente não
foi do estudo cuidadoso da realidade. A União Europeia, através do serviço de
estatística Eurostat, publica a taxa de pobreza dos pensionistas (At-risk-of-poverty rate for pensioners),
números que parecem desconhecidos à maioria dos que falam no tema. Em 2004 os
pensionistas pobres eram de 25,8% do total, bastante abaixo da maioria. Mas a
taxa desceu acentuadamente desde então, sendo 15,8% em 2012. Isso é até
bastante inferior à taxa de pobreza do total do país, 17,9%, o que indica que
os pensionistas não são um grupo desprotegido.
Como podem estes números ser
verdade considerando os cortes recentes? A resposta é óbvia se abandonarmos
fúrias e estribilhos e, acima de tudo, pensarmos um pouco, condição difícil nos
embates políticos. De facto, as reduções das prestações não têm atingido os
escalões mais baixos, onde estão os verdadeiros pobres. Além disso, apoiado na
sua pensão, esse grupo está mais imune aos dramas da recessão que afectam em
cheio a população trabalhadora. Ninguém nega os enormes sofrimentos que a
austeridade tem gerado aí, como em toda a classe média, a grande vítima desta
crise. Mas, precisamente sendo classe média, não é justo considerá-la pobre.
Este é o pior dos truques do
nosso velho e astuto inimigo. É fácil que a justa indignação pelo sofrimento
justifique as maiores atoardas. Revoltadas pelo mal, muitas pessoas íntegras e
benfazejas perdem a cabeça, cometendo erros e falhando o alvo, por pura
ignorância. Pior, em vez de debater ideias, é fácil insultar, agredir,
desprezar os que dizem a verdade. Porque verdade é algo que não abunda nos
debates políticos, sobretudo acerca deste velho inimigo.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 16-12-2013
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