Alexandre Homem Cristo
Nos últimos anos, muitos casos
foram severa e justamente criticados nos jornais e na opinião pública enquanto
atentados à liberdade de imprensa. À excepção de um: o SMS de António Costa.
Num país com uma real cultura
de liberdade, os insultos via SMS que António Costa dirigiu ao jornalista João Vieira Pereira,
director-adjunto do jornal Expresso, teriam merecido reprovação generalizada e
embaraçado o líder socialista. Mas, como estamos em Portugal e como se trata de
António Costa, foi apenas nota de rodapé durante um feriado. Imagine o que
seria se o mesmo tivesse acontecido nos EUA, no Reino Unido ou em França. Ou,
tão simplesmente, o que se diria caso o autor do SMS fosse Passos Coelho ou
Miguel Relvas, em vez de António Costa. Quando a nossa disponibilidade para
condenar ataques à liberdade de imprensa é selectiva, algo está mal. E é por
isso que não é fácil desempatar e decidir o que é mais grave neste episódio: se
o próprio SMS de António Costa ou se o facto de ninguém se ter realmente
importado.
Como tantos outros, João
Vieira Pereira fez o seu trabalho, analisou as propostas do cenário
macroeconómico do PS e publicou a sua opinião. Concorde-se ou discorde-se, não há
como justificar a opção de António Costa que, discordando, inventou um ataque
ao seu carácter (num texto onde nem sequer é mencionado) e insultou o
jornalista por SMS. Quando não se gosta do que está escrito num jornal,
ignora-se ou exerce-se o direito de resposta, mas não se recorre ao insulto ou
à intimidação. O que António Costa fez é, portanto, desprezível – viesse de
quem viesse. Mas, vindo de um candidato a primeiro-ministro, é não só
inaceitável como assume relevância política: representa um incómodo para com a
liberdade e um prenúncio da perigosa relação de domínio que, aliado ao poder,
António Costa tentará manter com a comunicação social. Basta recordar Sócrates
e a sua “liberdade respeitosa” para saber que esta combinação de poder e mau
feitio está longe de ser um pormenor sem importância.
É, no entanto, inquietante que
quase toda a gente tenha preferido olhar para o lado, enterrando o episódio no
baú dos fait-divers. Na comunicação social, por exemplo, o caso
despertou apenas breves referências, o que é difícil de compreender num sector
como o jornalístico, que sempre interpretou intimidações a um dos seus como um
ataque generalizado ao jornalismo e à liberdade de imprensa – nomeadamente
quando os ataques vêm de figuras políticas. Mais incompreensível ainda é a
ausência de reacção oficial do Expresso, que optou por deixar ao seu
director-adjunto o ónus de denunciar o caso na sua coluna de opinião, sem o
apoio institucional de uma tomada de posição do jornal. No fundo, o Expresso
desvalorizou o acto e agiu (até ao momento) como se António Costa não fosse
candidato a primeiro-ministro e como se a intimidação de um director-adjunto
não fosse uma agressão ao próprio jornal. Não defender os seus contra
intimidações equivale a tolerá-las. Hoje foi João Vieira Pereira, amanhã será
outro – da mesma forma que, da próxima vez, um outro político fará as vezes de
António Costa.
Não é segredo que, da esquerda
à direita, os políticos sentem a tentação de dominar os meios de comunicação.
Em ano eleitoral, prevê-se aliás o aguçar dessa ambição e, nesse sentido, o acto
de António Costa não é inovador – a novidade está na (ausência de) reacção ao
seu SMS. Recorde-se que o Governo de Santana Lopes criticou a TVI por causa do
espaço televisivo de Marcelo e fez, em 2005, campanha eleitoral contra os
jornalistas. Que Sócrates processou mais de uma dezena de jornalistas,
intimidou por telefone mais uns quantos e foi acusado de orquestrar a tentativa
de compra da TVI. Que o deputado socialista Ricardo Rodrigues roubou gravadores
a jornalistas da revista Sábado em plena entrevista. Que o ministro Miguel
Relvas, em 2012, ameaçou e pressionou uma jornalista e uma editora do jornal
Público. Que, recentemente, os partidos do arco de governação tentaram impor um
visto prévio na cobertura mediática das campanhas eleitorais. E que todos estes
casos foram severa e justamente criticados nos jornais e na opinião pública
enquanto atentados à liberdade de imprensa. Todos, à excepção de um: o SMS de
António Costa.
Dir-me-ão que cada caso é um
caso e, em parte, talvez seja assim. Mas se começarmos a estabelecer excepções
quanto ao respeito por princípios básicos de um regime democrático, como é a
liberdade de imprensa, estaremos a abdicar do que temos de melhor. É estranho
ter de o relembrar, mas as regras da liberdade aplicam-se a uns e a outros da
mesma forma, sem privilégios. Dito de outro modo, nem António Costa nem outro
político qualquer devem estar isentos de escrutínio ou poder enviar todos os
SMS insultuosos contra jornalistas que o saldo do seu telemóvel permitir. É
igual para todos. E quem achar que António Costa deve constituir excepção
depois não se venha queixar.
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