Maria João Avillez
Costa vai poder contar com os
disponíveis. Vão-lhe ser certamente de muito maior utilidade que os
recalcitrantes comunistas ou as azougadas raparigas do Bloco, quem vêm com
prazo de validade. Eles não
1. Já ouvi chamar batota,
abuso, embuste, assalto, geringonça, manigância a esta trapalhada em que
estamos, feiíssima trapalhada que as boas almas se apressam sempre a rotular de
“legítima”, com a palavra à trela ou no bolso, usada a torto a direito, como garantia
de bênção pelas diversas intelligentia.
(Sucede é que por vezes o que é “legitimo” não coincide com o que está
“certo”).
Nunca porém ouvi evocar o
caldo cultural ou civilizacional que tornou a trapalhada exequível mas julgo
que ela seria impossível há quinze, vinte anos, quando o chão debaixo das
nossas convicções era um pouco mais sólido. Não me parece que há duas ou três
décadas atrás algum líder ou algum partido – mesmo munido de despudorada
ambição de poder – contasse com tão propício caldo cultural para pôr ao lume o
cozinhado que aí está.
A conjugação entre o abandono
de alguns valores essenciais, o relativismo acelerado, a sucessiva perda de
vários nortes; a falta de convicções, o menosprezo do sentido de pátria, o
desuso do interesse nacional, teceram entre si a teia ideal onde hoje
“manigâncias” ou “geringonças” se inscrevem com fluida naturalidade. Protegidas
pela cápsula da “legitimidade”, claro está.
Não é de resto senão essa
assinalável naturalidade que melhor mede os níveis de infecção do ar do tempo
que é o nosso. Basta ouvir o silêncio ensurdecedor que durante as últimas
semanas envolveu todo o espaço à direita do PS para se compreender o que digo;
basta constatar como os habitantes desse espaço foram incapazes de
operacionalizar, com proveito politico, o caudal de “indignação” que – em
privado ou em inócuos fóruns – diziam sentir; basta observar como alguns
mentores ou responsáveis da sociedade civil, patrões ou “concertadores
sociais”, estão já disponíveis para o benefício da dúvida senão mesmo para a
fé, para, com assinalável segurança, obter a temperatura do ar que se respira.
À excepção das poucas centenas
de patriotas que se deram ao trabalho de exibir na rua a a vergonha da sua
humilhação ou de uma ou duas (não mais) iniciativas com a da Associação das
Empresas Familiares, ninguém abriu a boca. Nem, de modo audível ou impressivo,
se ouviram os tambores da “indignação”.
Que poderiam eles fazer
perguntarão os de má-fé, julgando (mal) que defendo uma guerra civil quando me
limito a constatar o óbvio: podiam não ter desaparecido, por exemplo. Podiam
não se ter deixado acantonar deste modo. Podiam ter-nos evitado o embaraço de
os ouvir “chamar” por Assis nas ruas, em vez de pelos seus. Podiam ter escrito,
intervido, manifestado, reagido – o que fosse – face a esta absolutamente
espantosa nova narrativa – uma estreia absoluta – segundo a qual não foi o PS
que virou à esquerda mas a direita que (céus!) “se radicalizou” de tal modo que
empurrou os socialistas, coitados, para o seu regaço esquerdo. Paulo Rangel
salvou ao de leve a honra deste convento com brilhante prosa sobre a imbecil
narrativa. Mas esperava-se mais, há de convir-se.
Todo esse espaço à direita do
PS – parte do qual de resto já se entretivera a votar em Outubro em moradas
políticas fantasiosas – preferiu agora demitir-se do que é e do que representa.
Vai-lhes a jeito. Enquanto isso, inertes e inúteis, suspiram por Cavaco Silva,
– “o Cavaco não vai empossar o Costa, pois não?” – transferindo para ele
frustrações e mágoas. Esperam pelo Presidente tal como há mais de cinco séculos
esperaram por D. Sebastião. São os mesmos.
D. Sebastião preferiu não sair
do nevoeiro como o Presidente da República (felizmente) preferirá não sair da
Constituição (e ainda bem, se me permitem).
Sim, o cozinhado vai ser
engolido. Mas por favor não procurem cozinheiros só no PS nem nos seus
(artificiais) aliados do PC e do BE: houve imensos ajudantes de cozinha à
direita. Alguns andavam de resto a treinar aos fogões há já alguns anos.
2. Nunca deixarei de pasmar
com os disponíveis para o adversário e com os obsequiosos para com o inimigo.
Porque não? perguntam eles a sério. Porque não dar o benefício da dúvida aos
cozinheiros – adversários ou inimigos? Porque não dar-lhes uma mão (as duas,
mesmo)? Com uma galhardia duvidosa estão sempre disponíveis para “conversar” e
com gosto até para “colaborar”. Porque há de ser “assim tão mau?”, ouço eu aos
disponíveis de todos os géneros. Não mostrou Costa os dotes de um “verdadeiro
político”? Não seria até boa ideia convidá-lo para esta ou aquela tertúlia para
o ouvir “esclarecer” melhor o que lhe vai na alma? Não é ele tão “hábil a
esgrimir” politicamente? Um “excelente negociador”, um “mestre do jogo”, um
“fabricante de consensos”, um político “combatente”? (Por pouco era De Gaulle
num bunker a tecer a vitória dos aliados). Não sei de onde pode vir este tipo
de disponibilidade – genética? – nem como ela se fabrica, sei que a acomodação
confunde.
Até “pode ser que corra bem”,
dizem com solicitude. E não é verdade que tudo ainda “mal começou”, perguntam,
dispostos a embarcar na nave dos loucos.
A última disponibilidade
conhecida é a fé (a maior das fés) num Centeno que além de se atabalhoar com o
verbo, mas isso ainda é o menos, exibe uma felicidade embaraçante. Há
visivelmente ali muito pouco suporte para tão grande cometimento. Tecnicamente,
politicamente, culturalmente, quem é afinal Mário Centeno? A pergunta é
legítima (consintam-me a consagrada expressão) após as suas últimas prestações
mediáticas e parlamentares, mas os disponíveis “aguardam”, claro, pois “é cedo”
para avaliar. Eu fiquei de cabelos em pé. Se já se estranhava tanta e
imperturbável indiferença em alguém como Mário Centeno que em quatro semanas
ficou despojado de um programa económico cujo conteúdo e desenho inspirou e
liderou, agora choca tão exuberante felicidade num responsável que – pelo que
se viu e ouviu e não fui só eu, foram milhões de pessoas – parece afinal pouco
talhado para a empreitada.
Se ao menos ele risse um pouco
menos. Mas até nisso os disponíveis estão disponíveis: o Centeno é um homem tão
simpático. E sério, vem do Banco de Portugal, tem obra publicada…
Ah, Costa vai poder contar com
os disponíveis. Vão-lhe ser certamente de muito maior utilidade que os
recalcitrantes comunistas ou as azougadas raparigas do Bloco de Esquerda. Os do
PC e do BE têm prazo como os iogurtes, e são eles aliás que decidirão a
conveniência desse prazo (se não o fizeram já). Os disponíveis, por definição,
têm bateria para toda a vida.
(Como não sou o televisivo
Porto Canal não peço desculpa. É exactamente isto que penso e quero dizer:
azougadas raparigas.)
3. Conheci Helmut Schmidt [foto] em
Dezembro de 1977, num aprazível serão no decorrer da visita oficial do então
Presidente Ramalho Eanes à então Republica Federal Alemã que cobri para o
Expresso (santo Deus, parece que estou a falar da Idade Média!).
Houvera um jantar em Bona
oferecido pelo casal Eanes aos seus anfitriões e, após o café, diante de uma
lareira acesa, um pequeno grupo entretinha-se a ouvir o chanceler Helmut
Schmidt, presente no banquete. Nunca mais me esqueci. Schmidt impressionava
pelo olhar denso, o porte, o verbo seco, a lucidez cortante, a visão das
coisas, a visão do mundo. O brilho da inteligência, a energia de um torpedo, um
critério sem falhas, a vontade política, a tenacidade, o bom uso do poder,
fizeram deste homem que pertenceu ao escol das lideranças mundiais um
excepcional político europeu com quem se contava. Nessa noite, em vez da casaca
protocolar (“não gosto dessas fantasias”), usava um bizarro “smoking” azul já
coçado, tinha as unhas pouco limpas, mas o interesse do que dizia e das
perguntas que fazia sobre Portugal (ouviu mais do que falou), absolveram-no dos
pecadilhos da forma. Acompanhara bem a revolução portuguesa e elogiou, sem
favor nem mimo, o “corajoso” social-democrata Soares que guiara Portugal por
entre a tempestade revolucionária reconduzindo-o à democracia.
“Penso que para o futuro – e
gostava de acreditar nisto – a sua figura será indispensável”. Helmut Schmidt
não se enganava. António Barreto, então ministro da Agricultura do mesmo Soares
e que integrava a comitiva do Presidente português, deve lembrar-se bem desta
conversa em “petit comité”, onde foi o interlocutor principal da pertinente curiosidade
do chanceler.
Helmut Schmidt fez escolhas,
separou águas, delimitou territórios, não teve medo.
Com isso honrou o Ocidente a
que pertencia. Agradeço-lho ter ajudado a fazer o mundo em que quero viver. E
agora que ele se despediu de uma vida que tão bem serviu, eu tinha de lhe dizer
isto.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 17-11-2015
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-