Paulo Ferreira
Quanto mais lemos, ouvimos e
vemos menos percebemos qual será, afinal, a base da política económica do
provável governo do PS apoiado pelo BE e pelo PCP.
A coisa já não estava fácil de
entender quando se pegou no programa que os socialistas levaram a eleições e se
deitaram fora algumas das suas medidas centrais e se enxertaram outras, por
necessidade negocial com os parceiros de “posição conjunta”.
É a vida, dir-se-á. Uma
negociação é um jogo de cedências mútuas para se chegar a um entendimento.
Certo. Mas é bom nunca perder de vista que o entendimento não é um fim em si
mesmo e que, depois de todas essas cedências, o que delas resultar tem que
fazer sentido, ser exequível e servir os objectivos, concorde-se com eles ou
não.
Mas os últimos dias tornaram
tudo ainda mais difícil de entender, com declarações e acções contraditórias.
Um exemplo. O economista de
nome Mário Centeno que esta semana falou ao “Financial Times” só pode ser um
homónimo do economista Mário Centeno que em Portugal é dado como futuro
ministro das Finanças de um governo liderado pelo Partido Socialista que assinou
três “posições conjuntas” com outros tantos partidos à sua esquerda.
Ao FT, Mário Centeno disse que
“ninguém de bom senso pode pensar em não pagar as dívidas que contraiu”. Mas
por cá, o PS assinou uma “posição conjunta” com o Bloco de Esquerda que vai criar,
entre vários, um “Grupo de Trabalho para avaliação da sustentabilidade da
dívida externa”. Para quê avaliar a sustentabilidade da dívida se o bom senso
obriga a que ela seja paga?
Ao FT, Mário Centeno disse que
para os socialistas o problema “não é a direcção” da política de redução do
défice mas sim a sua “velocidade”. Mas por cá o PS fala em ruptura com a
política de direita e apregoa a necessidade de se acabar com a austeridade.
Defende, por isso, uma mudança de direcção, senão mesmo uma inversão de marcha
na política que chama “de empobrecimento”.
Outro exemplo. Os compromissos
assinados pelo PS com os restantes partidos prevêem “a anulação das concessões
e privatizações em curso dos transportes públicos de Lisboa e Porto”, entre
outras. Está escrito desta forma, sem “ses”. Mas na quarta-feira fontes
socialistas já vieram dizer que a anulação de privatizações e concessões só
avança se não tiver encargos para o Estado, o que será virtualmente impossível
em negócios que já têm contratos assinados e direitos constituídos por parte
dos grupos privados envolvidos nessas operações.
São três exemplos daquilo que
nos espera mas, sobretudo, da impossibilidade de se fazer uma coisa e o seu
contrário e dos riscos de prometer tudo a todos e de escrever os discursos de
acordo com o que as plateias querem ouvir.
Há um lado do PS que sabe e
sente que a proximidade do partido ao PSD é muito maior do que ao PCP e ao BE.
Mas o outro lado teve necessidade de radicalizar o discurso e de alegar
fracturas imaginárias para poder justificar perante o eleitorado a
impossibilidade de um entendimento à direita para poder fazer a única aliança
que lhe daria o poder e que faria do perdedor António Costa primeiro-ministro.
E essa era à esquerda.
Há um lado do PS que sabe que
as contas têm que estar certas, que o défice tem que ser reduzido e que a
austeridade não pode ser desmantelada irresponsavelmente, até porque se
recordam bem de como levaram o país à bancarrota. Mas o outro lado, para ser
poder, teve que prometer ao PCP e ao BE aquilo que não poderá cumprir. E isso
falou mais alto.
Há um lado do PS que está
preocupadíssimo com a leitura que, sobretudo lá fora, está a ser feita das
mudanças políticas no país e teme que um destes dias os mercados acordem mais
mal dispostos, decidam não pagar para ver e não dêem sequer o benefício da
dúvida à solução governativa que está a ser construída. Mas o outro lado, para
garantir apoio parlamentar que permitam ao governo tomar posse, é tentado a pôr
em causa a confiança dos credores.
Há um lado do PS que sabe que
não pode afugentar investidores e empresários, reverter unilateralmente
negócios feitos pelo Estado há meia dúzia de meses e fazer com que as
instituições deixem de ser consideradas “pessoa de bem”. Mas o outro lado
prefere satisfazer as clientelas sindicais do PCP nos transportes para
conseguir suporte para um governo.
As duas posições são
inconciliáveis e não há discurso, por mais habilidoso e criativo que seja, que
as possa compatibilizar.
Os discursos são e serão
continuamente contraditórios porque a CGTP e a audiência do Financial Times têm
visões opostas do mundo e interesses divergentes. Cada um dos lados quer, por
isso, que o governo, seja ele qual for, faça coisas radicalmente diferentes.
O PS já percebeu isso e às horas
pares assina com o PCP e o BE promessas de estatização crescente da economia e
às horas ímpares vai aos mercados fazer o controlo de danos, dizendo que o país
continua aberto para fazer negócios, que nada vai mudar e que o peso da despesa
pública é para continuar a cair.
É evidente que este
equilibrismo não pode durar muito. Quando as medidas importantes forem tomadas
alguém vai sentir-se defraudado. Se forem uns, retiram o dinheiro e vão embora.
Se forem outros, levam os votos e continuam por cá.
Título e Texto: Paulo Ferreira, Observador,
13-11-2015
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