Gabriel Mithá Ribeiro
O pensamento das esquerdas
transformou-se, no último século, em solidamente anti-ocidental e chegou o
tempo das diversas utopias fazerem desaguar as suas violências (também) nas
sociedades ocidentais.
Paris, sexta-feira, 13 de
novembro de 2015. Mais uma vez o quotidiano de gente comum foi invadido pela
morte gratuita. Acima de uma centena de cadáveres num dos corações do Ocidente.
O tempo começa a ser o de não condescender com o pensamento que está no âmago
dessa violência.
Intriga-me constatar que os
ténues sinais de mudança limitam-se a identificar a fonte do ódio no Islão ou
em parte dele. Se apenas conseguimos vislumbrar a árvore e não a floresta é
porque essa atitude dá muito jeito ao pensamento e práticas políticas das
esquerdas, independentemente de serem moderadas ou radicais. Basta
afastarmo-nos das sociedades ocidentais para se perceber que, onde quer que tal
família de ideologias se afirme, o seu traço comum assenta na aversão ou mesmo
no ódio às sociedades ocidentais.
Quando não lhes é possível
identificar razões históricas para a sua postura, como a ‘culpa’ pela
escravatura ou pelo ‘colonialismo’, descobrem no Ocidente fontes nefastas ‘alternativas’,
como o ‘imperialismo’, o ‘capitalismo’, o racismo ou o militarismo.
No século XXI, a aceitação
dessas ‘acusações’ raia a estultícia. Como se não soubéssemos da irmandade
habitual entre a violência coletiva assassina e o marxismo-leninismo-maoísmo.
Como se não soubéssemos que do ‘colonialismo’ europeu também e sobretudo gerou
a maior transformação civilizacional de sempre das antigas sociedades
colonizadas.
Como se não soubéssemos que
uma parte das antigas sociedades colonizadas vive, nos dias que correm,
fenómenos de regressão civilizacional em alguns dos seus núcleos fundamentais
por responsabilidades próprias, atestadas por manifestações impensáveis há umas
poucas décadas (quotidianos marcados por mortes gratuitas; criminalidade
galopante; linchamentos populares; desrespeito pela propriedade; xenofobia
endémica).
Como se não soubéssemos que
foram as sociedades ocidentais as únicas onde existiu uma cruzada moral genuína
contra a escravatura e, depois, contra o racismo. Como se não soubéssemos que é
nas sociedades ocidentais que, na atualidade, as mulheres e as mais variadas
minorias são respeitadas e, se necessário, protegidas, bem mais do que alguma
vez no passado e muitíssimo mais comparativamente a diversas sociedades
não-ocidentais.
Parte importante da
ultrapassagem de fenómenos que atentam contra a dignidade humana teve o
contributo das esquerdas intelectuais e políticas do Ocidente. No entanto, não
é irrelevante sublinhar que tais transformações históricas também e acima de
tudo se inscrevem na tradição milenar de matriz filosófica e cristã em que
assentam os valores europeus e, depois, ocidentais. Passaram cerca de dois
milénios sem que os ocidentais tenham renegado tais heranças. Nesta perspetiva,
as ideologias das esquerdas pouco mais serão do que detalhes carregados de
ambiguidades no decurso do último século. Basta pensar nos milhões e milhões de
cadáveres por responsabilidades diretas e indiretas das utopias das esquerdas
vergonhosamente relegados para o limbo da dignidade humana.
É tempo de se questionar se
o pensamento das esquerdas ocidentais, hoje hegemónico, não está ele mesmo
imbuído de um fortíssimo espírito anti-ocidental, o mesmo que alimenta as
demais esquerdas ou ideologias aparentadas dominantes no resto do mundo.
Mas os dilemas europeus e
ocidentais estão também na incapacidade humana de cada um mudar ‘por dentro’.
Bem mais fácil e cómodo é exigir que os outros mudem. Os islâmicos dão muito
jeito. Porém, não chega. Para os europeus, tal exigência é penosa por colocar
em causa a hegemonia das ideologias das esquerdas que deram sentido à vida de
segmentos significativas das suas populações. Resta saber se tiros, bombas e
mortes os arrancarão da letargia em que mergulharam.
Como não acontece com outras
sociedades em dimensão equiparável, o facto é que as sociedades ocidentais têm
sido exímias em exorcizar os fenómenos violentos que elas mesmas geraram,
orientando-se por um sentido genuíno de auto-responsabilização. No mundo
não-ocidental, a regra é bem mais a da vitimização coletiva, tornada
problemática por impedir a refundação de ordens morais sustentáveis no tempo e
cultural, política, social e economicamente férteis.
Não entender que no âmago
do sentido civilizacional dos ocidentais reside, há séculos e séculos, a sua
luta interna contra os seus próprios males tem sido prejudicial para os
próprios, mas sobretudo para as sociedades não-ocidentais se contabilizássemos
o mal em número de cadáveres.
Quem lida com pessoas ou
sociedades que se auto-responsabilizam por excesso tende para excessos de
auto-desresponsabilização. Daí que muitas das elites dispersas pelo mundo usem
e abusem do álibi dos males causados pelos europeus ou pelos ocidentais com
graves prejuízos para as suas sociedades. Nada como pensar e governar mal, nada
como semear a violência interna, para depois jogar as culpas para o passado
histórico ou para os de fora, os do Ocidente, posto que os últimos amparam este
arriscado jogo.
Porém, quando as culpas são
jogadas para fora, as fontes do sofrimento, da miséria ou da violência
permanecem incólumes no interior dessas sociedades. Depois, será sempre bem
mais fácil legitimar a violência antiocidental quando passa das palavras aos
atos.
No Ocidente, vai sendo também
tempo de se perceber que as fontes de violência não estão mais no direito de
expressão das minorias. Residem muito mais no direito e na dignidade de
expressão das minorias que sobrevivem dentro das minorias e que não alinham
pelo politicamente correto. Sejam minorias raciais, religiosas, sexuais ou
étnicas. Se a sua dignidade fosse respeitada e valorizada, as minorias no seu
todo beneficiariam da maior facilidade de integração nas sociedades de
acolhimento, bem como as suas sociedades de origem não-europeias seriam mais
propensas a transformações mais identificadas com a civilização ocidental. Por
viverem de estereótipos quase grosseiros das minorias, esta incapacidade dos
ocidentais constitui uma das fontes de que se alimenta o extremismo islâmico e
demais comportamentos e atitudes que atentam contra o modelo de vida ocidental.
Não é difícil ainda supor que
fora do Ocidente – dos países árabes aos países africanos ou asiáticos –
existem minorias pró-ocidentais ou, pelo menos, minorias que se identificam sem
ambiguidades com a civilização ocidental. Porém, dificilmente ousam
exprimir-se por temerem o poder das elites dos seus países, mas não menos por
saberem que, em particular nas sociedades das antigas potências coloniais
europeias, não encontrarão quem as valorize ou, se necessário, as apoie. Antes
encontraram a barreira politicamente correta da humilhação liderada por uma
casta ocidental bem-pensante, a elite intelectual e académica dominante. Há
décadas que estes se encarregam de desincentivar, amesquinhar ou destruir mesmo
os sentimentos pró-ocidentais que subsistem por todo o mundo. Depois, para
glorificação das esquerdas que vivem no interior das sociedades ocidentais, é
fácil alegar que o mundo odeia o Ocidente.
Em Portugal, por exemplo, o
pecado de não ser genuinamente europeu (na cor da pele e demais atributos primários)
e ousar manifestar sentimentos pró-ocidentais pode ser cobrado com mimos do
calibre do ‘pretinho salazarista’. Se isto não é estupidez não sei o
que seja tal coisa. E a dita anda à solta.
Alguns casos-tipo das fontes
dos males ocidentais. Na abordagem da escravatura, quantos se preocuparam em
refletir sobre o tema contabilizando os milhões de escravos africanos negros
levados para os países árabes (entre outros países asiáticos) ao longo de
séculos, espaços de onde provém a violência do extremismo islâmico, e o que
aconteceu a esses milhões de escravos. Até hoje alguém deu por complexos de
culpa endógenos associados ao fenómeno naquelas civilizações? Na abordagem do
racismo, a quantos é explicado que o problema é hoje muitíssimo mais ameaçador
fora do Ocidente? No caso da liberdade religiosa quase não vale a pena colocar
a questão por ser por demais óbvio o tratamento violento das minorias (ou até
das maiorias) cristãs em diversos países.
Não duvido que o pensamento
político e social das esquerdas tenha tido um papel respeitável nas
transformações sociais entretanto ocorridas, porém as esquerdas estão muito
longe de terem criado a eterna reinvenção das sociedades ocidentais.
Estas há muitos e muitos
séculos que vivem num conflito permanente entre os seus ideais filosóficos e
cristãos, que apontam para a dignidade e igualdade do género humano, e as suas
realizações concretas que tornaram os ocidentais sempre insatisfeitos com
aquilo que alcançam. Como explicou Dinesh de Souza, é por essa razão que os processos
políticos têm sido, ao longo da história, muito mais dinâmicos no Ocidente do
que em quaisquer outras civilizações.
Numa tendência intrínseca ao
Ocidente, o facto é que as esquerdas acabarão por ser ultrapassadas pela
história. Resta saber em que sentido. As suas virtudes do passado estão
transformadas nas suas maiores fragilidades precisamente porque o lugar
subjetivo da Europa e do Ocidente não os colocam hoje numa posição de força em
relação às demais sociedades, antes numa posição de vulnerabilidade ou mesmo de
fraqueza alimentadas pelas utopias dessas mesmas esquerdas.
Em 1918-1919, Max Weber
explicou:
“É uma verdade plena e um
facto básico de toda a história (…) que com frequência ou, melhor, em geral o
resultado final da ação política se encontra numa relação absolutamente
inadequada e, muitas vezes, até paradoxal com o seu sentido originário” (Weber,
2005 «A política como vocação» in Três tipos de poder e outros escritos,
Lisboa, Tribuna da História, p. 103).
O pensamento das esquerdas
ocidentais transformou-se, no último século, em consistentemente anti-ocidental
e chegou o tempo das diversas utopias ideológicas que comungam desse ideal
fazerem desaguar as suas violências (também) nas sociedades ocidentais. Para já
por via do radicalismo islâmico. Mas o pano de fundo é bem mais vasto. Olhe-se
para Paris. Transformada na nova mira da incurável violência progressista, a
última paradoxal e vigorosamente presente no pensamento de muitos parisienses.
O extremismo islâmico dispara e explode bombas também porque na Europa
Ocidental não falta quem pense por ele.
Título e Texto (e Grifos): Gabriel Mithá Ribeiro, Observador,
16-11-2015
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