José Manuel Fernandes
O multiculturalismo falhou porque ignorou
a centralidade dos nossos valores. O laicismo também falhou pois ignorou que a
modernidade não é só filha do Iluminismo, é também da tradição do cristianismo.
Não foi assim que imaginámos
que ia acontecer.
Não imaginámos que a
globalização, que muitos diziam que ia empobrecer os pobres, causasse afinal
problemas nos países ricos. E por isso não vimos chegar Donald Trump, como
antes não compreendêramos o significado do voto popular em Marine Le Pen ou em
Nigel Farage.
Não imaginámos que aqueles que
foram sendo acolhidos na Europa como imigrantes se voltassem tão violentamente
contra os valores dessa mesma Europa. Não imaginámos que uma, duas gerações depois
de chegarem continuassem não apenas a não estar integrados, como a recusar a
integração.
Não imaginámos que, depois da
revolução portuguesa de 1974, das transições democráticas na América Latina,
desse maravilhoso ano de 1989 em que caiu o Muro de Berlim, os regimes
autoritários voltassem a ter prestígio e até apoio popular. Tal como não
imaginámos que a ideia de “primavera democrática” não tivesse o mesmo sentido,
nem o mesmo destino, nas duas margens do Mediterrâneo.
Eu sei que houve muitos
avisos. Que muitos alertaram para o excesso de optimismo. Que houve quem
previsse uma viragem dos ventos, quem notasse que, na viragem do século,
estávamos porventura a viver um momento de “viragem da maré”, e que vinham aí
tempos menos previsíveis, mais turbulentos, com menos liberdade, com menos
esperança.
Eu sei isso tudo, até porque
várias vezes, ao longo destes anos, alertei para a necessidade de algum
cepticismo: a História não é um processo com um só sentido, a ideia de que se
pode forçar o Progresso (com P maiúsculo) é mesmo das mais perigosas.
Mas, convenhamos, não me
recordo de alguém ter previsto esta espécie de “tempestade perfeita” em que
parece estarmos a entrar neste Verão de 2016. E não, não é a economia, pois
nunca houve tanta riqueza ao dispor de tantos no conjunto da Humanidade. E não,
também não é guerra, pois a verdade é que também nunca, na história da mesma
Humanidade, houve tão poucas guerras e, proporcionalmente, tão poucas pessoas a
morrer de morte violenta.
Os eleitores de Trump ou Le
Pen podem sentir-se deixados para trás pela globalização, mas não deixam por
isso de ter acesso a níveis de conforto e de consumo que mesmo há uma ou duas
gerações eram inacessíveis mesmo àquela pequena parte da população mais rica.
Os terroristas de Nice ou de Ansbach ou de Bruxelas podem invocar
discriminação, mas a verdade é que todos eles tinham acesso a níveis de
protecção social ou a condições de liberdade inimagináveis nos países de onde
vinham, ou de onde os seus pais tinham vindo.
Eu sei que porventura não
devia estar a colocar num mesmo saco fenómenos que são muito diferentes, assim
como associar num mesmo parágrafo eleitores inquietos com criminosos sem nome.
Amalgamar tudo nunca é bom critério – mas também não é esse o meu objectivo. A
preocupação é outra: é ter a imagem de conjunto. É ver como há certezas, ou
expectativas, que se esboroam, escapando-se por entre os dedos das nossas mãos,
tal areia fina.
É que é essa imagem que
surpreende, e não apenas pela vertigem das notícias, que podem ser tão
distintas como um motim racial nuns Estados Unidos presididos por Barack Obama,
ou a eleição de Trump (por enquanto apenas como candidato republicano), a vaia
dos delegados híper-radicalizados na conferência do partido democrata, a subida
do populismo nacionalista e do extremismo de esquerda entre os eleitorados
europeus, a opção de jovens educadas nas nossas escolas por deixarem os seus
trajes europeus e regressarem à niqab ou mesmo à burka, enquanto outros
defendem restrições à liberdade em nome do direita a não ser ofendido, tudo
isto para não falar dos ataques de Orlando, de Nice, de Ansbach e, agora, de
Saint-Étienne-du-Rouvray. O que teve por palco uma igreja. Aquele em que um
padre de 86 anos foi degolado, numa encenação semelhante à realizada com os
reféns do deserto sírio.
Essa é a imagem de um mundo
que não imaginávamos possível ainda há poucos anos. Um mundo onde as
democracias parecem mais frágeis, mais susceptíveis de sucumbirem perante as
investidas do autoritarismo, do populismo ou do radicalismo, ou de tudo isto à
mistura. Um mundo onde a convivência e a integração se revelam muito difíceis
de conseguir, antes regridem. Um mundo que, afinal, não partilha valores que
considerávamos, e consideraramos, universais, mas que uns contestam, outros
repudiam, outros combatem de forma encarniçada.
Um dia vamos ter de discutir a
sério as razões do refluxo da maré que parecia trazer liberdade e prosperidade
para cada vez mais, e isto sem nos reduzirmos aos simplismos de culpar outros –
sejam eles os mercados financeiros, a guerra do Iraque ou a ignorância das
classes baixas e dos velhos que votam sempre mal. Nessa altura talvez
compreendamos algumas coisas.
A primeira, é que as
instituições que deram corpo às nossas democracias e que permitiram a nossa
prosperidade não nasceram do nada e muito menos, como alguns sugerem, da rapina
do tempo dos impérios. Essas instituições, sendo produto de uma longa
maturação, têm raízes na cultura judaico-cristã que é – ou era, digo temerosamente
– a do Ocidente. Um Ocidente que também é filho da tradição grego-romana e do
iluminismo. Um Ocidente que também não pode esquecer que a solidariedade não
existe sem uma forte ética do trabalho, que os cidadãos estão antes do Estado,
que a democracia é sobretudo sobre regras, não sobre resultados. Se não
percebermos que é tudo isto que faz (ou ainda faz) a nossa identidade, nem
sequer perceberemos o que estamos a defender.
A segunda, é que temos de
encontrar formas de adaptar as expectativas à realidade. Se é mentira que tenha
existido um passado paradisíaco a que valesse a pena regressar, como sugerem
muitas nostalgias, também é verdade que o grande desafio das nossas sociedades
e dos nossos políticos vai ser o de viver com pouco ou nenhum crescimento. Há
dois séculos que não sabemos o que isso é na Europa Ocidental e nos Estados
Unidos, pelo que temos pela frente o grande desafio de aprender a viver em
democracias que já não vão conseguir oferecer o progresso material a que nos
habituámos, geração atrás de geração.
A terceira, que temos mesmos
de defender a nossa identidade e os nossos valores. Não somos nós que temos de
nos adaptar, que temos de rever os nossos livros de História, reescrever as
letras dos hinos ou deixar de venerar os grandes vultos da nossa cultura, de
apreciar os monumentos que ergueram ou os livros que escreveram – são os que
nos procuram em busca de uma vida melhor que devem integrar-se. A prosperidade
que procuram não é independente dos valores que a tornaram possível – e esses são
os nossos valores, não os deles. Como também não são os dos populismos
nacionalistas ou dos radicalismos socialistas.
O multiculturalismo falhou
porque desistiu da centralidade dos nossos valores como base do nosso modo de
vida. O laicismo também falhou porque ignorou que a modernidade não é apenas
filha do Iluminismo, é também herdeira da tradição do cristianismo, e que isso
é válido mesmo para os ateus.
Nestes dias em que a sucessão
de acontecimentos nos vai tornando quase imunes ao choque, porventura à
indignação, e nestes tempos em que sinais tão diferentes e contraditórios fazem
com que até seja difícil pensar, e ainda mais perceber, talvez o melhor
antídoto para o desnorte seja o regresso ao essencial, e o essencial são os
nossos valores, aqueles que são as referências, os pontos cardeais que temos de
ter presentes no meio da tempestade – e no dia a dia deste tempo de muitos
medos.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
28-7-2016
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