Rui Ramos
Ao contrário do SIRESP e da vigilância de
Tancos, a "gestão política" do governo funcionava: ninguém discutia
as cativações e esquecemos as viagens da Galp. Mas eis que nem a
"gestão" já funciona.
Durante dois anos, o país
esteve sujeito à tese de que o optimismo e o “pensamento positivo” são, como
nas revistas cor de rosa, o que mais importa. Bastavam afeto e boas notícias
para tudo correr bem. Patetice? Alguma. Manha? Bastante. Mas também uma teoria:
a de que a verdadeira “realidade”, em política, consiste apenas em “fenómenos
mediáticos”. No “estado da nação”, conta menos como a nação verdadeiramente
“está”, do que como a nação se “sente”. E o sentimento da nação, segundo a
teoria, é algo que pode ser manipulado. A política, em suma, é sobretudo
“comunicação e gestão política”.
Viu-se essa teoria posta a nu
durante a tragédia de Pedrógão-Grande e a “humilhação” de Tancos. O que
importava não era tomar decisões, mas aparecer na televisão com a cara certa
(olhos húmidos, vá lá, um bocadinho mais húmidos, isso, muito bem, as câmaras
estão além, corra…). O que importava não era perceber o que se tinha passado,
mas persuadir o público de que a responsabilidade só chega aos ministros quando
são condenados em última instância, e que, nos demais casos, apenas os “operacionais”
são responsáveis (ponha um ar displicente, assim, mostre-se enfadado com as
perguntas, levante a cabeça, olhe-os de cima…).
Fazer política, de acordo com
a teoria, é gerir “imagens” e “momentos simbólicos”. Era aliás desse ponto de
vista que António Costa passava por ser muito “hábil”. Por isso, Costa não foi
censurado, na imprensa, por ter tolerado um sistema de emergência sem eficácia
ou instalações militares sem segurança — mas por ter ido de férias. Como é que
um “mestre” pôde cometer um “erro” tão básico? Foi assim que o jornalismo e o
comentário se desencantaram com Costa: afinal, o “fenómeno” não era tão bom
como parecia.
O governo, a certa altura,
parece ter esperado que umas idas à televisão e uns minuetes de passa-culpas
chegassem para diluir 64 mortos e umas centenas de quilos de armas roubadas. É
compreensível. Pois se durante dois anos, com uma das maiores dívidas do mundo
em relação ao PIB, a mais baixa natalidade da Europa, a economia europeia que
menos cresceu no século XXI, bancos falidos, um Estado capturado por grupos de
interesse, finanças dependentes do BCE e gerações para quem as únicas
perspectivas são servir à mesa os turistas que têm medo de ir para a Tunísia —
pois se com tudo isso, conseguiu “fazer passar” a “imagem” eufórica de que tudo
“corria bem”, porque não havia de conseguir mais uma vez?
Este tipo de governação não
começou com Costa. Mas para um primeiro-ministro que perdeu as eleições e para
um partido europeísta amparado em partidos antieuropeístas, que outra coisa há
para fazer, senão saciar clientelas e controlar a “opinião” (primeiras páginas,
aberturas de telejornais, redes sociais)? Daí a precipitação do Ministério da
Administração Interna ao publicitar sondagens no site oficial: é tudo o que
importa. Daí, também, a resistência de Costa à demissão dos ministros: como
todos os fracos, não pode mostrar fraqueza.
Ao contrário do SIRESP e da
vigilância de Tancos, a “comunicação e a gestão política” do governo
funcionavam: durante dois anos, as cativações não foram discutidas, e toda a
gente esqueceu as viagens da Galp. Mas eis que até a “gestão política” parece
estar a falhar. Como todos os sistemas dependentes da imagem, basta uma imagem
para o abalar. A realidade não mudou: moveu-se apenas o suficiente para revelar
a extrema vulnerabilidade de um “fenômeno mediático” que nunca teve outro fim
senão salvar, a qualquer custo, as carreiras de uns quantos oligarcas.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
11-7-2017
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