Alberto Gonçalves
É gente literalmente abjeta. Perante a
tragédia, decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram desleixos
maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmeras, dão
abraços.
Em maio passado, gastei uma
quantidade inusitada de tempo a fazer o que nunca faço: reler as minhas
crônicas, no caso as que escrevi sobre o atual governo. O propósito era nobre,
e prendia-se com a publicação de um livro saído esta semana (pausa publicitária:
que mil familiares do dr. César lhe desabem na cabeça se ainda não adquiriu tão
magnífica obra). A experiência foi traumática, para dizer o mínimo. Acompanhar
a chamada “atualidade”, de modo a garantir a coluna no Observador, é convívio
mais do que suficiente com os bandos que tomaram conta disto. Não é
clinicamente aconselhável reforçar a confraternização.
Os textos em causa, muito
menos por mérito do autor do que pelo evidente e portentoso demérito das
criaturas que mandam em nós, são premonitórios. Na medida em que as premonições
não primam pelo otimismo, são também deprimentes. Desde o primeiro momento, a
loucura intrínseca à aliança das “esquerdas”, legitimada por um Presidente que
o artigo 328.º do Código Penal me impede de comentar, mostrou ao que vinha e
para que servia. O impressionante não é que o desastre se tenha confirmado com
estrondo, mas que durante ano e meio o desastre se confundisse, para uma
notável percentagem da população, com um relativo sucesso. A sucessão de
glórias circenses, da bola às cantigas, passando pelo Santo Padre ou pelo Santo
Guterres, não explica tudo. A submissão de boa parte dos “media” explica um
bocadinho. As benesses do turismo explicam outro bocadinho. A apatia do bom
povo e o júbilo das clientelas talvez expliquem o resto.
Certo é que, em poucas
semanas, alguma coisa mudou. Não mudaram o circo, os “media”, o povo ou as
clientelas. Sucedeu apenas que, de repente ou nem por isso, a realidade
tornou-se impossível de negar. E a invencível nação que, de acordo com a
propaganda, maravilhava a Terra acordou destapada. E feia. Foram necessários
dezenas de cadáveres carbonizados e um picaresco (e aterrador) roubo de
armamento ao exército para expor, à revelia da maquilhagem e do “spin” e das
“boas notícias”, a natureza da gente que ocupa o poder.
Não tem sido um espetáculo
agradável, exceto para apreciadores da incompetência, do descaramento e da
radical ausência de dignidade. É, em suma, uma gente literalmente abjeta.
Perante a tragédia, eles decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram
desleixos maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as
câmeras, dão abraços. Perante a culpa, acusam eucaliptos e furriéis. Perante o
caos, pedem avaliações de popularidade. Perante a obrigação, partem de férias
para Ibiza, a subjugar espanhóis com a barriga e um par de cuecas.
A propósito de Espanha, é
revelador que, apesar dos divertidos esforços dos “jornalistas” de cá para os
calar, sejam sobretudo os jornais de lá a contar-nos o que o “estrangeiro” vê
quando olha para aqui. Vê uma anedota perigosa, um manicômio em autogestão,
uma experiência do Terceiro Mundo às portas da Europa. E, naturalmente,
assusta-se.
O susto não é descabido.
Descabido é o rumo que, com a sensatez habitual, o “debate” indígena ameaça
seguir. A oposição, se a palavra se aplica, andou uma semana a lamentar o
colapso do Estado e a reclamar a demissão dos ministros da Administração
Interna e da Defesa e o regresso do dr. Costa. Para quê? Não imagino. A
substituição de duas insignificâncias por duas insignificâncias iguaizinhas não
alteraria nada. O prolongamento das férias do dr. Costa por 20 ou 30 anos
alteraria imenso. Quanto ao Estado em frangalhos, em teoria só um socialista,
assumido ou dissimulado, se maçaria com o tema – na prática, o aborrecido é a
devastação principiar pelos únicos pedaços que, se calhar, convinha manter.
Entre o chinfrim, sobra um
fato: Portugal é governado por uma coligação de leninistas com sentido de
oportunidade e de oportunistas com nostalgias totalitárias. O que nos está a
acontecer é o percurso fatal em qualquer arranjo do gênero. Começa-se em
euforia, avança-se para a estupefacção, saltita-se para a raiva e termina-se em
desgraça, porque semelhante malformação não poderia terminar de maneira diferente.
O simbolismo da recente manifestação de apoio ao sr. Maduro, em Lisboa, não é
desprezível.
No mesmo dia em que os
funcionários da ditadura atacaram com marretadas pedagógicas o parlamento
venezuelano, o Conselho Português para a Paz e Cooperação, uma excrescência do
PCP, desfilou a regozijar-se com o sangue das vítimas. Na homenagem,
participaram, cito, “representantes da câmara municipal de Lisboa” e, quiçá, em
celebração de Tancos, a Banda do Exército. Segundo o “Diário de Notícias”, o
belo evento “foi perturbado por um incidente com um cartaz”. O cartaz rezava
“Venezuela Livre”, e o portador acabou devidamente assaltado em prol da paz e,
claro, da cooperação.
Portugal não está nas mãos de
irresponsáveis, tradição a que aliás nos habituáramos: está nas mãos de
criminosos, por ação ou omissão. São eles que, a cada calamidade, juram que
podia ter corrido pior. E, no que depender deles, há de correr.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
8-7-2017
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