Rui Ramos
Esta é a ocasião de restituir verdade ao
debate político, e de admitir que, ao contrário do que disse a atual maioria,
não há escolhas sem custos e sem riscos. As "cativações" tiveram um
preço.
Ainda se lembram da primeira
vez que viram o truque? O ilusionista, em palco, aumenta salários e pensões, e
no fim o défice do orçamento é mais pequeno. A plateia governamental e afim
bateu imensas palmas e sorriu muito. Ali estava, contra os malvados “neoliberais”,
a prova de que havia “outro caminho”, que era possível ter sol na eira e chuva
no nabal. A consolidação orçamental sem dor existia.
O país estava naturalmente tão
desejoso de acreditar, que a lenda de que António Costa descobrira os almoços
grátis resistiu a dois debates do orçamento. Em Bruxelas, a Comissão Europeia
também aprovava, pondo termo a qualquer polémica. Foi preciso o incêndio de
Pedrogão Grande, com os seus 64 mortos, mais o roubo de armamento em Tancos e a
sensação de derrocada do Estado, para finalmente termos uma verdadeira
discussão sobre a nova austeridade inaugurada por Costa com o apoio parlamentar
do PCP e do BE. O défice desceu? À custa de quê? Com que preço?
Há quem fale de oportunismo a
propósito destas questões. Não há qualquer oportunismo. É absolutamente
legítimo e relevante perceber como foram compensados os aumentos imediatos de
salários e de pensões decididos pelo governo, e qual o seu impacto no
funcionamento do Estado. Sabemos que houve cortes maciços no investimento e na
aquisição de bens e de serviços, para permitir mais despesa sem agravar o
défice. Chegou-se assim a um dos mais baixos níveis de investimento público dos
últimos 50 anos e às maiores “cativações” de que há registo (quase mil milhões
de euros em 2016). Foi ou não o Estado, nos últimos dois anos, privado de meios
para desempenhar os seus deveres e funções? A dúvida existe. E não fazer a
pergunta, em nome de um falso conceito de pudor político, seria apenas a prova
de que a classe dirigente já se sentiria, como nas autocracias mais fechadas,
acima das interrogações dos cidadãos.
Para o regime, este é um
momento fundamental. Por um lado, trata-se de atender à desconfiança suscitada
pelo espetáculo degradante do colapso do Estado; por outro lado, é a ocasião de
restituir verdade ao debate político, e de admitir que, ao contrário do que
disse a atual maioria, não há escolhas sem custos e sem riscos. A opção deste
governo e da maioria social-comunista consistiu, na prática, em sacrificar os
serviços públicos aos empregados e demais dependentes do Estado. Os funcionários
foram encarados apenas como consumidores, a quem convinha devolver rendimentos,
e não como trabalhadores, a quem era preciso dotar com os meios necessários
para desempenhar as suas funções.
Os deputados da maioria
fingiram-se muito zangados com a ideia de que o governo se ocupa sobretudo das
suas “clientelas” de potenciais votantes. Pois os funcionários públicos são
“clientes”, perguntavam com a voz a tremer? Não, não são necessariamente
clientes. O governo e os partidos que o apoiam é que os tratam como “clientes”,
com a estratégia cínica de lhes criar um “interesse” egoísta na continuação do
seu poder, através de uma política de privilégio dos funcionários em relação ao
resto da sociedade. O clientelismo está na política, não está em quem a critica.
O BE lamenta agora que o
governo de António Costa tenha “ido além da meta estabelecida para fazer, em
Bruxelas, o número do défice mais baixo da história”. Parece assim que temos
mais um governo que foi “além da troika”, sendo neste caso a troika composta pelo
PS, o PCP e o BE. Enfim, nesta matéria não há milagres, embora haja ilusões.
Algumas ficaram expostas nestas semanas de tragédia, caos e irresponsabilidade.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
7-7-2017
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