Helena Garrido
O que se passou em Tancos e em Pedrogão
Grande resolve-se com políticas de rigor e exigência. Não há falta de dinheiro,
há desorganização, irresponsabilidade e facilitismo que apoiam o “deixar
andar”.
Há uns anos um autarca
confessava que era de facto muito importante investir no tratamento de
resíduos, mas as pessoas não valorizavam. Traduzindo: ninguém votaria nele se
gastasse no que era importante em vez de ir alimentado o povo com festas e
bolos, como alcatroar estradas que estão boas, mas por onde muita gente passa,
ou rotundas com relva e flores, ou ainda um centro cultural por autarquia, ou
ainda mais recentemente uma proliferação de passeios pedonais e para
bicicletas. O país era (é) o reflexo em grande dessas prioridades. A
generalização das autoestradas é um bom exemplo. Tudo isso sim, dá nas vistas.
Como um bom “novo rico”, o que está debaixo do tapete pouco importa.
Quando a troika chegou a
maioria aplaudiu e parecia de facto farta desse esbanjamento, parecia que se
tinha percebido que andávamos a ver o mundo ao contrário, que em vez do
importante tínhamos valorizado a imagem. Um pouco como acontecia há algumas
décadas quando víamos um grande carro em frente de uma barraca e não
percebíamos as prioridades de quem lá morava. O país parecia ter percebido que
não podia nem queria ser uma barraca com um carrão à porta. Até que percebeu
que para ter uma casa melhor tinha de ter um carro pior. E, aparentemente,
regressámos ao que éramos. Ou pelo menos é essa a imagem que nos dá aquilo que
nos aconteceu nos últimos tempos e que queremos, com todas as forças que temos,
atribuir à fatalidade, ao fado.
Façamos uma descrição seguindo
a linha do tempo, mais recente, e evitando ir mais atrás. Primeiro a
possível fuga de informação do exame de português. Os valores éticos e
morais subjacentes na mensagem da aluna e a reação do Ministério da Educação
são dolorosamente reveladores de como estamos a ver-nos uns aos outros ao
espelho, o povo e os políticos que nos governam. A aluna, para quem é normal
revelar-se o conteúdo de um exame por, supõe-se, uma professora ativa no
sindicalismo e como tal “comuna”, tem uma quantidade enorme de pré-conceitos e
valores já completamente distorcidos. Sim, a maioria dos alunos não perderia
esta oportunidade. Mas nem todos, queremos acreditar, ficariam imunes, sem
qualquer tipo de revolta moral, a uma coisa destas. Depois o Ministério da
Educação: não se anula a prova, vai-se investigar. Esperemos que o resultado
não seja aquele que se viu por exemplo no caso do erro estatístico das
transferências para os ‘off-shores” – não houve mão humana, concluiu-se.
Ou ainda da lamentável
conclusão preliminar da comissão parlamentar de inquérito à gestão da CGD.
Mas tudo isto são pequenos
eventos, que nos podem chocar, mas não nos põem boquiabertos com o estado do
Estado.
É no incêndio de Pedrogão
Grande que nos confrontamos com o grau de desorganização do Estado numa das
suas funções nucleares: a garantia da segurança dos cidadãos. Morreram pessoas
num incêndio e aquilo a que assistimos é a mil e uma explicações. E aquela que
se aproxima mais da nossa cultura de “fado” a assume-se como possível logo nas
primeiras horas do incêndio, validada pela Polícia Judiciária. Explicação que
seguiu o tom dado pelo Presidente da República – fez-se o que se podia, foi uma
fatalidade.
E não foi. Quem não sofre de
clubismo partidário ou quer conhecer a realidade sabe que não foi uma
fatalidade, foi um Estado burocrático, adormecido, abandalhado e desorganizado
que entrou pelos nossos olhos a dentro nesses dias de terror em Pedrogão Grande
e matou pessoas e deixou centenas sem lar. E depois há a reorganização da
floresta que não se vê, que não dá votos.
Quando pensávamos que tínhamos
atingido o grau zero, eis que sabemos que em Tancos roubaram calmamente e seletivamente material bélico capaz de deitar um prédio abaixo. Até nas Forças Armadas chegámos ao estado de “deixa andar,
tanto faz e logo se vê, não te preocupes”. Tínhamos um espaço recheado de
material bélico sem vigilância adequada e com uma vedaçãozinha mesmo ali ao
lado da A23? Na era do terrorismo?
Não, demitir ministros não
resolve nada como não resolveu no passado. Mas ao menos podíamos manter esse
padrão ético de exigência e responsabilidade. Um ministro tem de saber que lhe
é pedido, no mínimo, que garanta o funcionamento dos serviços que tutela. Essa
exigência é reforçada num país como o nosso, onde as principais lideranças dos
serviços públicos são ocupadas por pessoas da confiança dos ministros ou do
partido que ocupa o poder. No caso da Administração Interna e da Defesa essa
sua obrigação, de garantir o bom estado do Estado, é ainda mais premente.
Estamos a falar daquele que é o núcleo do Estado.
No caso da ministra da
Administração Interna, o que está em causa não é obviamente a ministra ter
chorado – perante aquela tragédia de Pedrogão todos chorámos. O que está em
causa é Constança Urbano de Sousa não ter tido a noção do estado em que tinha
os importantes serviços que tutela, nem os ter orientado para a época de
incêndios. Menos grave, mas não menos importante é o facto de ter focado
frequentemente a mensagem em si própria e no que estava a sentir. Naquela
altura tinha de falar para quem estava a sofrer muito mais do que ela e para
todos os portugueses. Também o ministro da Defesa mostrou não ter a noção da
falta de segurança do armamento em Tancos. Tinha de o saber e não pode nem deve
usar como argumento a falta de dinheiro. Como também não pode dizer que não foi
informado – se não foi era sua obrigação ter pedido informação.
E não, não é a falta de
dinheiro que explica o roubo em Tancos ou as mortes no incêndio de Pedrogão
Grande. Se há menos dinheiro é preciso definir prioridades e aplicá-lo no que é
importante e não no que serve objetivos eleitoralistas ou de vida de rico com
casa de pobre.
Aquilo que nos tem acontecido
nos últimos meses coloca-nos perante a imagem de um país desorganizado,
desresponsabilizado. Uma cultura de rigor, exigência e responsabilidade não se
compra com dinheiro. Conquista-se com políticas que combatem o facilitismo e
incentivam a exigência e a responsabilidade.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
6-7-2017
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