quinta-feira, 6 de julho de 2017

António Costa: o princípio do fim da maior fraude da política portuguesa?

João Lemos Esteves

Num partido que se orgulha de ser laico e maioritariamente agnóstico ou ateu (se é que há diferenças entre estes dois conceitos), é tão bizarro ver a fé inabalável dos seus militantes nas virtudes divinas (otimistas irritantes) do seu líder máximo

1. Na semana transata escrevemos, neste espaço, um artigo cujo título suscitou controvérsia: sobre a tragédia de Pedrógão Grande, declarámos então que o “Estado ficou a nu (e não foi bonito de se ver)”. Muitos (sobretudo entre a “elite” política nacional) julgaram tratar-se de um exagero com laivos populistas. Outros – menos, cada vez menos – consideraram que se tratou somente de um título “com piada” e de um texto “excessivo”, com “ressabiamentos anti-costistas”. Enfim, foi o normal: em detrimento de se discutir a substância, discute-se a forma. Em vez de se discutir os problemas por nós escalpelizados, prefere-se analisar as intenções ou os sentimentos do autor do texto. 

2. Em vez de reconhecerem que há um problema sério e de consequências (ainda) imprevisíveis na máquina administrativa do Estado, os apoiantes da geringonça preferem desencadear manobras de diversão, arranjar “inimigos externos” e persistir na adulação quase incomodativa de António Costa. O PS – e, hoje, já o PCP e o Bloco de Esquerda (foi emocionante ver Fernando Rosas a dar um “miminho” no ombro de Pedro Silva Pereira, na passada quinta-feira, na TVI24) – trata António Costa como se fosse o seu deus. Num partido que se orgulha de ser laico e maioritariamente agnóstico ou ateu (se é que há diferenças entre estes dois conceitos), é tão bizarro ver a fé inabalável dos seus militantes nas virtudes divinas (otimistas irritantes) do seu líder máximo. Há qualquer coisa de místico na veneração – diríamos mesmo submissão intelectual – dos socialistas a António Costa.

3. De tal modo que há socialistas patriotas e inteligentes que já perceberam que a geringonça pode, a prazo, liquidar a credibilidade do PS – mas preferem a comodidade e o comodismo do silêncio. Da resignação. Preferem ver o seu partido, a sua pátria, a caminharem para o precipício, a assumir a ousadia e a bravura intelectual da discordância, do alerta e da prudência. Quando nós escrevemos, há oito dias, que o “Estado vai nu”, mal sabíamos quão erradas se revelariam as nossas palavras. Contudo, ao invés do que afirmaram os nossos críticos, falhámos por defeito – e não por excesso. Efetivamente, o excesso pressupõe que a análise política exceda a realidade, que vá além da realidade. Ora, o nosso diagnóstico foi mais benigno que a realidade; ficou aquém da realidade. Logo, há oito dias, dizer-se que o Estado vai nu poderia ser tido como dramatismo; hoje, dizer-se que o Estado vai nu pode ser tido como simplificação da realidade. Relendo o texto da última edição deste “Secar o Pântano”, concluímos que, afinal, as nossas palavras foram eufemísticas.

4. Com efeito, à luz dos factos que apurámos no espaço de uma semana, afirmar-se que o Estado vai nu é o único elogio que se pode formular a António Costa: aquilo que tem sucedido nos últimos dias, no coração e no cérebro da máquina da administração pública, é constrangedor. Inexplicável. Indescritível. É pavoroso (não há adjetivação possível que retrate com fidelidade o quão embaraçoso tem sido o governo português na última semana). Primeiro, os portugueses vieram a saber que, de facto, a tragédia de Pedrógão Grande foi amplificada pelo caos administrativo e pela desorganização da máquina administrativa. A sensação com que se fica é que não há liderança, não há procedimentos definidos com rigor, não há um plano de contingência, não há planeamento, não há rigorosamente nada! A administração pública, para a qual (e bem) nós pagamos impostos, multiplica-se por uma série de entidades, organismos e agências – no final, porém, ninguém sabe como agir, quais as suas funções e a quem devem reportar. Que António Costa não julgue que logrará enganar os portugueses com a história da trovoada seca: esta pode ter sido a causa inicial dos fogos; não foi certamente a causa da tragédia.

5. Como se não bastasse, a semana terminou de forma ainda mais desastrosa para Costa: armamento militar poderoso foi furtado na base militar de Tancos, lançando a preocupação na comunidade internacional (não só entre os portugueses) e ferindo a credibilidade do Estado português. A noção de que o material assim subtraído tem como destino a sua comercialização no mercado negro para causas terroristas lança dúvidas sobre a capacidade de Portugal para lidar com estes fenómenos (ou, noutra perspectiva, lança certezas sobre… a incapacidade portuguesa): afinal, o setor que tem como premissa essencial da sua existência a organização e a disciplina é tão caótico como a administração interna, a educação ou a agricultura sob a batuta de António Costa.

6. Concluindo: a administração pública – como os fenómenos recentes comprovam – espelha aquilo que é o governo. É um governo geringonçado, logo é uma administração pública geringonçada – logo, é um Portugal geringonçado. Se o governo de António Costa resulta de um entendimento político exótico, de arranjinhos políticos permanentes entre forças que se odeiam e da concessão de favores a uns e a outros, como poderíamos esperar que a administração pública não fosse também uma manta de retalhos em que cada um manda à sua maneira? Quer seja na administração interna, quer seja na defesa, quer seja na educação ou noutro setor qualquer, é cada um por si e Deus por todos. É o desenrascanço nacional na versão geringonça: deu-se poder às várias estruturas que são dominadas por cada um dos partidos que apoiam o governo, criando uma espécie de “poli centrismo decisório” dentro da administração – do qual o próprio governo não consegue agora desenvencilhar-se…

7. Podemos, pois, começar a assistir ao princípio do fim da maior fraude da política portuguesa: António Costa, o génio da política – criação que contou com a conivência de muitos, incluindo (ou sobretudo?) da comunicação social. Que Costa tem muito jeito para habilidades e arranjinhos, lá isso tem. Mas querer reduzir a política a esta política é um insulto à inteligência dos portugueses e um atentado ao nosso futuro coletivo.
Título e Texto: João Lemos Esteves, jornal “i”, 5-7-2017

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