João Lemos Esteves
Num partido que se orgulha de ser laico e
maioritariamente agnóstico ou ateu (se é que há diferenças entre estes dois
conceitos), é tão bizarro ver a fé inabalável dos seus militantes nas virtudes
divinas (otimistas irritantes) do seu líder máximo
1. Na semana transata escrevemos, neste espaço, um artigo cujo
título suscitou controvérsia: sobre a tragédia de Pedrógão Grande, declarámos
então que o “Estado ficou a nu (e não foi bonito de se ver)”. Muitos (sobretudo
entre a “elite” política nacional) julgaram tratar-se de um exagero com laivos
populistas. Outros – menos, cada vez menos – consideraram que se tratou somente
de um título “com piada” e de um texto “excessivo”, com “ressabiamentos
anti-costistas”. Enfim, foi o normal: em detrimento de se discutir a
substância, discute-se a forma. Em vez de se discutir os problemas por nós
escalpelizados, prefere-se analisar as intenções ou os sentimentos do autor do
texto.
2. Em vez de reconhecerem que há um problema sério e de
consequências (ainda) imprevisíveis na máquina administrativa do Estado, os
apoiantes da geringonça preferem desencadear manobras de diversão, arranjar
“inimigos externos” e persistir na adulação quase incomodativa de António
Costa. O PS – e, hoje, já o PCP e o Bloco de Esquerda (foi emocionante ver
Fernando Rosas a dar um “miminho” no ombro de Pedro Silva Pereira, na passada
quinta-feira, na TVI24) – trata António Costa como se fosse o seu deus. Num
partido que se orgulha de ser laico e maioritariamente agnóstico ou ateu (se é
que há diferenças entre estes dois conceitos), é tão bizarro ver a fé
inabalável dos seus militantes nas virtudes divinas (otimistas irritantes) do
seu líder máximo. Há qualquer coisa de místico na veneração – diríamos mesmo
submissão intelectual – dos socialistas a António Costa.
3. De tal modo que há socialistas patriotas e inteligentes que já
perceberam que a geringonça pode, a prazo, liquidar a credibilidade do PS – mas
preferem a comodidade e o comodismo do silêncio. Da resignação. Preferem ver o
seu partido, a sua pátria, a caminharem para o precipício, a assumir a ousadia
e a bravura intelectual da discordância, do alerta e da prudência. Quando nós
escrevemos, há oito dias, que o “Estado vai nu”, mal sabíamos quão erradas se
revelariam as nossas palavras. Contudo, ao invés do que afirmaram os nossos
críticos, falhámos por defeito – e não por excesso. Efetivamente, o excesso
pressupõe que a análise política exceda a realidade, que vá além da realidade.
Ora, o nosso diagnóstico foi mais benigno que a realidade; ficou aquém da
realidade. Logo, há oito dias, dizer-se que o Estado vai nu poderia ser tido
como dramatismo; hoje, dizer-se que o Estado vai nu pode ser tido como
simplificação da realidade. Relendo o texto da última edição deste “Secar o
Pântano”, concluímos que, afinal, as nossas palavras foram eufemísticas.
4. Com efeito, à luz dos factos que apurámos no espaço de uma
semana, afirmar-se que o Estado vai nu é o único elogio que se pode formular a
António Costa: aquilo que tem sucedido nos últimos dias, no coração e no
cérebro da máquina da administração pública, é constrangedor. Inexplicável.
Indescritível. É pavoroso (não há adjetivação possível que retrate com
fidelidade o quão embaraçoso tem sido o governo português na última semana).
Primeiro, os portugueses vieram a saber que, de facto, a tragédia de Pedrógão
Grande foi amplificada pelo caos administrativo e pela desorganização da
máquina administrativa. A sensação com que se fica é que não há liderança, não
há procedimentos definidos com rigor, não há um plano de contingência, não há
planeamento, não há rigorosamente nada! A administração pública, para a qual (e
bem) nós pagamos impostos, multiplica-se por uma série de entidades, organismos
e agências – no final, porém, ninguém sabe como agir, quais as suas funções e a
quem devem reportar. Que António Costa não julgue que logrará enganar os
portugueses com a história da trovoada seca: esta pode ter sido a causa inicial
dos fogos; não foi certamente a causa da tragédia.
5. Como se não bastasse, a semana terminou de forma ainda mais
desastrosa para Costa: armamento militar poderoso foi furtado na base militar
de Tancos, lançando a preocupação na comunidade internacional (não só entre os
portugueses) e ferindo a credibilidade do Estado português. A noção de que o
material assim subtraído tem como destino a sua comercialização no mercado
negro para causas terroristas lança dúvidas sobre a capacidade de Portugal para
lidar com estes fenómenos (ou, noutra perspectiva, lança certezas sobre… a
incapacidade portuguesa): afinal, o setor que tem como premissa essencial da
sua existência a organização e a disciplina é tão caótico como a administração
interna, a educação ou a agricultura sob a batuta de António Costa.
6. Concluindo: a administração pública – como os fenómenos recentes
comprovam – espelha aquilo que é o governo. É um governo geringonçado, logo é
uma administração pública geringonçada – logo, é um Portugal geringonçado. Se o
governo de António Costa resulta de um entendimento político exótico, de
arranjinhos políticos permanentes entre forças que se odeiam e da concessão de
favores a uns e a outros, como poderíamos esperar que a administração pública
não fosse também uma manta de retalhos em que cada um manda à sua maneira? Quer
seja na administração interna, quer seja na defesa, quer seja na educação ou
noutro setor qualquer, é cada um por si e Deus por todos. É o desenrascanço
nacional na versão geringonça: deu-se poder às várias estruturas que são
dominadas por cada um dos partidos que apoiam o governo, criando uma espécie de
“poli centrismo decisório” dentro da administração – do qual o próprio governo
não consegue agora desenvencilhar-se…
7. Podemos, pois, começar a assistir ao princípio do fim da maior
fraude da política portuguesa: António Costa, o génio da política – criação que
contou com a conivência de muitos, incluindo (ou sobretudo?) da comunicação
social. Que Costa tem muito jeito para habilidades e arranjinhos, lá isso tem.
Mas querer reduzir a política a esta política é um insulto à inteligência dos
portugueses e um atentado ao nosso futuro coletivo.
Título e Texto: João Lemos Esteves, jornal “i”, 5-7-2017
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