Alexandre Homem Cristo
É alarmante que, na hierarquia do Estado,
todos fujam às suas responsabilidades. É o que mais corrói a confiança dos
cidadãos: a impotência perante os poderes instalados, inimputáveis e
inatingíveis.
O que aconteceu em Tancos – o
maior assalto a armamento militar neste século na Europa – é inaceitável e
incompreensível num Estado moderno. Não vale a pena meter água na fervura: esta
situação põe em causa a segurança nacional e a dos aliados europeus. E se algum
do armamento roubado for utilizado num ataque terrorista, esta falha de
segurança terá custado vidas. Sendo este um sector de soberania e de exclusiva
responsabilidade do Estado, não se percebe o que mantém no lugar o ministro da
Defesa Nacional (MDN) e o chefe de Estado-Maior do Exército (CEME). Sim,
suspendeu cinco comandantes, para não prejudicar as investigações, mas
esqueceu-se de si próprio. Se há casos em que a responsabilização política é direta
e inequívoca, este é um deles. É de bom senso exigir a demissão imediata de
ambos.
Enquanto isso não acontece (se
é que acontecerá), a história piora. Confrontado com este incidente de extrema
gravidade, a preocupação do CEME tem sido a sua própria desresponsabilização.
Primeiro, disse que “estes roubos podem acontecer em qualquer Exército, em
qualquer país, desde que haja intenções, vontades e capacidades”. Ora, poder
até podem – na teoria tudo é possível – mas, na prática, aconteceu em Tancos e
não num outro sítio qualquer. Segundo, afirmou que não lhe “compete avaliar
porque é que a videovigilância estava avariada há cerca de dois anos”. Ou seja,
para o CEME, uma falha de segurança grave que deixou o armamento à mercê do
assalto na mais importante base do Exército não é um assunto que mereça a sua
avaliação.
Entretanto, tudo piora ainda
mais. Em declarações ao país, o MDN cometeu dois erros imperdoáveis para quem
está na sua posição. Primeiro, tentando desdramatizar e talvez achando
tranquilizar a população, informa que “há quebras e falhas de segurança muito
superiores” às que permitiram o assalto em Tancos. A ser verdade tal afirmação,
e seria muito importante que o MDN explicasse o que quis dizer com isso,
Portugal tem tremendas fragilidades em termos de segurança nacional. Segundo, o
MDN sugere que, enquanto ministro, não sabe “se há falta de segurança em
Tancos”. Ora, se não sabe devia saber – era o que faltava se cada ministro
lavasse as mãos do que se passa sob a sua tutela. E, de resto, tudo indica que
o ministro sabia mesmo, porque assinou um despacho no início de junho para
autorizar o reforço da vedação que havia sido cortada. E espera-se que a sua
decisão tenha sido fundamentada no conhecimento da situação.
As palavras gastam-se depressa
e escrever que isto é um escândalo pode não fazer justiça à real gravidade do
que caiu sobre Portugal nos últimos quinze dias. Em Tancos, aconteceu o maior
roubo de armamento militar deste século na Europa. Em Pedrógão Grande,
assistiu-se à maior tragédia humana da democracia portuguesa. E, em Lisboa,
surgiu uma fuga de informação inédita em mais de vinte anos de exames
nacionais. Tudo isto é grave, na sua devida escala e grau. Mas verdadeiramente
alarmante é que, na hierarquia do Estado, todos estejam a fugir às suas
responsabilidades. Não há responsáveis, não há um fidedigno apuramento das
responsabilidades, não há expectativas de consequências para quem for culpado,
não há problemas corrigidos. No fim do dia, é isso que mais corrói a confiança
dos cidadãos em quem os representa no Estado: a impotência perante os poderes
instalados, inimputáveis e inatingíveis.
Daqui a uns meses, quando se
fizer o balanço destes tempos, será esta uma das conclusões. Para sobreviver à
sucessão de crises, o Estado, o governo e os interesses instalados adiam tudo
para concluírem nada, sacrificando de vez a confiança dos cidadãos na representação
política e nas instituições da república. É um caminho perigoso. Quando o
desgaste se impuser e quando desconfiar das instituições da democracia
portuguesa ascender a imperativo, já não haverá retorno.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador,
3-7-2017
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