Alberto Gonçalves
O primeiro-ministro esteve impecável. Em
vez de explicar, como os fracos, o dr. Costa exigiu explicações. Em vez de
pedir desculpas, como os malucos, pediu um “focus group” sobre a sua
popularidade.
Contra a descrença de alguns,
felizmente poucos, o Estado afinal esteve à altura dos acontecimentos em
Pedrógão Grande. O Presidente da República esteve soberbo. Oito dias depois de
ter assegurado que fora feito o possível na segurança dos cidadãos, apareceu a
exigir que se apurasse “tudo, mas mesmo tudo, o que houver a apurar”. Um
burgesso julgaria que a investigação precede as conclusões, mas espíritos
superiores do calibre do prof. Marcelo não se deixam tolher pelas amarras do
senso comum. Pelo meio, ainda arranjam tempo para atender a uma festança
beneficente, faltar aos funerais das vítimas e distribuir abraços comovidos e
comoventes a 381 transeuntes – fora os que conseguiram fugir.
O primeiro-ministro esteve
impecável. Em vez de explicar, como os fracos, o dr. Costa exigiu explicações.
Em vez de dar respostas, como os pelintras, o dr. Costa fez perguntas. Em vez
de pedir desculpas, como os malucos, o dr. Costa pediu um “focus group” para
avaliar o impacto dos fogos na sua imprescindível popularidade. E sempre com um
perpétuo ar compungido, que só interrompeu para participar, aos saltinhos, no
“lançamento” de um indivíduo obscuro – e certamente prodigioso – à câmara de
Lisboa.
A ministra da Administração
Interna esteve excelente. Chorou imenso, o que é prova cabal de sensibilidade.
Nos (curtos) intervalos, declarou que:
1) o incêndio de Pedrógão
Grande foi um grande incêndio;
2) aquele foi o pior momento
da vida dela;
3) não se demite na medida em
que a demissão seria o “mais fácil”, e que prefere “dar a cara”. A cara lavada
em lágrimas, escusado recordar.
O Bloco de Esquerda esteve
magnífico. De início, ao pedir chuva em lugar de demissões. Em seguida, ao
descobrir que a culpa dos incêndios é dos eucaliptos, que os eucaliptos foram
uma invenção de Salazar e que os capitalistas da celulose querem calcinar o
país inteiro. Ficou claro que o conhecimento do dr. Louçã & Cia. em matéria
de fogos florestais rivaliza com a erudição que demonstram na economia e, de
resto, em qualquer assunto que se dignem abordar. Avisado, o governo apressou-se
a proibir o eucalipto, em forma plantada ou tentada.
O PCP esteve fabuloso. Perdida
a liderança do combate ao eucalipto para o BE, os comunistas desprezaram
Pedrógão Grande e mantiveram-se focados nas autênticas prioridades nacionais,
leia-se uma greve dos professores convocada para fingir que a classe está
descontente.
O parlamento esteve
irrepreensível. Os partidos aprovaram uma comissão de especialistas, metade dos
quais a nomear pelo dr. Ferro Rodrigues. Elogiar isto seria redundante.
A Proteção Civil esteve
fantástica. Dotada há três meses de novas chefias, muitas sem experiência na
matéria de modo a refrescar aquilo, a entidade não serve apenas para emitir
avisos coloridos: também serve para confundir as calamidades ao adotar
procedimentos caóticos e avulsos. Num instante, o método “andar à nora” (jargão
técnico) fintou as expectativas das chamas e mostrou-lhes quem manda.
O famoso SIRESP esteve
imaculado. Após numerosos testemunhos de que esta luminosa herança do dr. Costa
não funciona, um relatório isento, realizado por uma empresa acionista do
próprio sistema, concluiu o contrário.
Os helicópteros Kamov, outra
negocia… desculpem, benesse do dr. Costa estiveram formidáveis. Não saíram do
chão, logo não são suspeitos de nada que se relacione com a tragédia.
Os “media”, salvo ligeiros
deslizes, estiveram estupendos. Às primeiras notícias funestas, correram a
auxiliar os que mais precisavam: o dr. Costa, a ministra e as metástases do
poder. Raramente se assistiu por cá a ação de solidariedade tão coordenada.
O facto é que, apesar de toda
a perfeição acima descrita, em Pedrógão Grande morreram, que se saiba, 64
pessoas, além das centenas de feridos, desalojados e desgraçados em geral.
Culpados? A tese oficiosa foi evoluindo. Começou por se desconfiar de uma árvore
(radicalizada e já devidamente referenciada pelas autoridades). Partiu-se para
a crítica à natureza, que nunca, nunca, nunca na História da Terra se
manifestara com tamanha violência. Prosseguiu-se com a acusação dos jornais
espanhóis que não veneram a competência do dr. Costa e, movidos pela inveja,
acham o nosso Estado um atraso e uma vergonha. Finalmente, chegou-se a um
consenso, aliás previsível: a culpa é de Pedro Passos Coelho, que confiou num
boato, permitiu-se uns comentários sobre eventuais suicidas na região dos
incêndios e, para cúmulo, desculpou-se pelo erro.
De súbito, o tipo de gente que
passou anos a misturar jovialmente suicídios e “austeridade” esfregou as mãos e
aproveitou a deixa. Não é que essa gente precisasse, mas enfim dispunha de um
“pretexto”, grotesco que fosse, para ignorar a incúria, a corrupção, a
demagogia, a incompetência, o descaramento, a prepotência e o desrespeito dos,
digamos, “responsáveis”. Para alívio coletivo, o horror talvez criminoso de
Pedrógão Grande se expiou numa frase infeliz. E, sem surpresas, os seus autores
preparam-se para sair impunes: o “focus group” determinou que a popularidade do
dr. Costa não sofreu abalos. No fundo, é que importa.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
1-7-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-