Paulo Tunhas
Lembrando Thomas Hobbes e o seu Leviatã,
diríamos que o soberano anda distraído de nós e da nossa proteção. E que a
comunidade política apresenta todas as características de uma carcaça
prematura.
“A Soberania é a Alma da
Comunidade Política; quando ela abandona o Corpo, os membros deixam de receber
dela o seu movimento”; transformam-se, na ausência dessa “Alma Artificial”, na
“Carcaça de um Homem”. Estas palavras do filósofo inglês Thomas Hobbes,
escritas em 1651, vêm facilmente ao espírito em tempos de crise, porque são sem
dúvida as mais emblemáticas de um tema central da filosofia política que ocupou
o espírito humano de Platão a John Rawls, o das condições de desagregação da
comunidade política.
Se pensarmos na nossa situação
atual, esta aproximação a Hobbes é obviamente um exagero, algo que serei o
primeiro a reconhecer. A sociedade portuguesa não é exatamente uma carcaça
inerme e incapaz de uma agitação qualquer. Vai-se mexendo e circulando, com
energia ou sem ela, mesmo que desligada da sua alma, para falar como Hobbes.
Mas a comparação não é inteiramente despropositada. A sociedade pouco já tem a
ver com qualquer princípio de organização representado pelo Estado. O Estado,
preocupando-se unicamente com a satisfação dos interesses de algumas clientelas
próprias, várias delas ditadas por alianças que o Governo teve de estabelecer
para se afirmar como poder, deixou, pouco a pouco, de representar a sociedade.
A bem dizer: quase deixou de ser Estado. O resto, a sociedade propriamente
dita, assemelha-se mesmo uma carcaça.
Continuando com Hobbes. Há, de
acordo com a sua teoria do contrato social, uma passagem de um estado de guerra
de todos contra todos, onde reina a insegurança e o medo da morte violenta, a
um estado civil onde todo o direito de se usar do poder próprio para preservar
a sua vida é transferido para a comunidade política, o Estado, representada
pelo soberano, que tanto pode ser uma monarquia como uma república ou uma
aristocracia. A única coisa verdadeiramente decisiva é que o soberano, o
representante, nos garanta a segurança que nos faltava no estado de natureza. A
preservação da segurança individual e coletiva é a única razão de ser do
Estado. A teoria do contrato social, do pacto, é obviamente uma ficção (elas
abundam em filosofia), mas é uma ficção destinada a ajudar-nos a pensar mais
claramente a nossa existência política real. E se é verdade que há na tradição
filosófica autores, como Aristóteles, que nos falam da experiência política de
um modo mais rico do que Hobbes, também o é que há algo em Hobbes que só pode
ser verdadeiro. Ou melhor: que nos oferece a mais razoável imagem das condições
elementares de vivermos juntos.
Acontece que o soberano pode
falhar na sua essencial missão, aquela que ditou a transferência coletiva dos
nossos poderes para a sua pessoa: a garantia da nossa segurança. Nesses casos,
que Hobbes analisa em detalhe, verifica-se algo como um retorno ao estado de
natureza. Quer dizer: os indivíduos, para preservarem a sua vida, ganham de
novo o direito a usarem de todos os poderes próprios para se defenderem uns dos
outros. Uma das muitas grandezas de Hobbes consiste em ele ter sentido como
ninguém antes ou depois a que ponto essa ameaça, a ameaça de um retorno ao
estado de natureza como consequência do enfraquecimento do soberano, se
encontra sempre presente na nossa vida política.
Hobbes tinha naturalmente
diante de si o exemplo da Grande Revolução e da guerra civil em Inglaterra. Mas
não é necessário recorrermos a exemplos tão extremos nem pensarmos o retorno ao
estado de natureza da forma plena e total como Hobbes o pensou. Há retornos ao estado
de natureza por assim dizer mais limitados e imperceptíveis. Quando o Leviatã,
o “Homem Artificial” (a comunidade política, o Estado) criado para a proteção
do “Homem Natural”, se começa a desagregar, as consequências não têm de ser uma
explícita guerra de todos contra todos em que cada ser humano é um lobo para o
outro. Há modos mais pacatos de tal retorno. O desrespeito pela lei, que passa
a ser sentida como carecendo de justificação, já que não nos protege, é sem
dúvida um deles. E poder-se-ia continuar com vários exemplos, num contínuo que
vai do mais público, do mais político, ao mais privado.
Ou muito me engano ou vamos
mesmo por este caminho. O soberano anda visivelmente distraído de nós e da
nossa proteção. E a comunidade política apresenta todas as características de
uma carcaça prematura. Hobbes dava como imagem do ficcional estado de natureza
a relação efetiva entre os vários Estados, todos eles com canhões apontados uns
aos outros. A desagregação do estado civil, do “Homem Artificial” que é a
comunidade política, traria esse modelo da política externa para o interior da
sociedade. Confesso que já andei mais longe de achar isso impossível entre nós.
Ligando a televisão e vendo vários ministros que obviamente não sabem o que
fazer nem têm qualquer concepção dos seus deveres ou das exigências que o
exercício do poder lhes impõe, nem do que podem fazer pela nossa segurança, ou
então um senhor omnipresente e conspicuamente frágil e irresponsável que só
parece saber falar de afetos, a possibilidade da carcaça salta aos olhos.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 6-7-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-