Gabriel Mithá Ribeiro
Os equilíbrios entre sociedade e
instituições têm sido destruídos pelo poder avassalador do marxismo cultural.
Vimos esse filme nos sistemas de ensino, na justiça, na degradação da segurança
interna.
Importa insistir em ideias
apresentadas neste espaço de opinião. As ordens morais coletivas são férteis e
sustentáveis no tempo, isto é, favoráveis à estabilidade da vida quotidiana, ao
desenvolvimento econômico, a avanços técnicos, culturais ou civilizacionais
quando fundadas em complexos de culpa coletivamente partilhados. Tal implica a
saliência de atitudes e comportamentos auto assumidos, genuínos e consequentes
de remorsos, arrependimentos e manifestação de culpas próprias quando as
práticas com as quais nos identificamos geram sofrimento em terceiros, no
passado ou no presente. Em “Totem e Tabu” (1912-1913), Freud considera que esse
sentimento de culpa manifesta-se nas práticas simbólicas que regulam a vida das
comunidades.
Não custa inferir que as
práticas simbólicas com poder de regulação estão hoje fortemente concentradas
na ação política que, por essa razão, está remetida para o âmago da ordem moral
das nossas sociedades.
Subvertendo as teses edipianas
de Freud datadas de 1912-1913, o restante século XX e o século XXI viram
afirmar-se e tornar-se dominante o poder das esquerdas, cuja génese
ideológico-intelectual está fundada num referente moral completamente diferente,
o complexo de vitimização. Daí a impossibilidade de uma ordem moral das
esquerdas no sentido freudiano do termo.
Não será historicamente
plausível que as esquerdas, das moderadas às radicais, algum dia se libertem da
sua génese patológica. A necessidade congénita de falsificação do sentido da
história e a atitude imperturbável face à violência própria e dos seus (ao
menos nisto a direita é substantivamente distinta) materializa-se na
canalização sistemática para terceiros de responsabilidades próprias sobre o
que é moralmente incómodo. A substância mantém-se, mudando apenas os rótulos.
As culpas são do “imperialismo”, “colonialismo”, fascismo, norte-americanos,
“ricos”, “neoliberalismo”, natureza, forças do terreno, oficiais de baixa
patente ou do que der jeito.
Num caldo
ideológico-intelectual dominado pelo marxismo cultural, torna-se muito difícil
consolidar um qualquer sentido de civismo ou, em rigor, de cultura cívica. Esta
mais não é do que a arte dos compromissos entre a tradição e a modernidade,
isto é, a arte de inovar sem romper com o que se herdou. É esse o sentido que
dois autores, Gabriel Almond e Sidney Verba, atribuem à cultura cívica.
Portanto, os ideais e práticas revolucionárias situam-se nos antípodas do
civismo.
Basta acrescentar mais dois
ingredientes para perceber como tudo isso é uma ameaça infalível à dignidade e
progresso dos povos.
Primeiro, uma noção básica de
política. Esta, na substância, mais não é do que aquilo que resulta da relação
entre o poder tutelar dos estados e as respetivas sociedades. Nessa relação,
quanto mais o estado pesa tanto maior a autoridade e, em sentido contrário,
quanto mais a sociedade pesa tanto maior a liberdade.
É necessário ser
intelectualmente muito limitado para admitir que os que defendem radicalmente o
poder do Estado possam alguma vez ser, ao mesmo tempo, defensores da liberdade
dos indivíduos e da autonomia da vida social, cultural ou económica. Tem sido o
controlo dos sistemas de ensino pelo marxismo cultural que vai transformando
povos inteiros em imbecis intelectuais. Assim é fácil disseminar patranhas.
Segundo, vivemos dominados por
instrumentalizações também nocivas de noções elementares de sociedade e de
instituição. Suponho ser consensual a ideia de apenas existirem sociedades
saudáveis quando nelas existem instituições fortes. Mas para isso umas e outras
não se podem confundir. Sociedade e instituição são objetivamente opostas.
Para ser simples, sociedade é
uma entidade (ou espaço) aberta da qual ninguém pode ser excluído e na qual, em
princípio, tudo pode ser negociado. Desde o tipo de governação à interdição da
pena de morte, entre inúmeras possibilidades. Por seu lado, existe uma parte
fundamental das sociedades que é institucionalizada. Neste caso, a instituição
só faz sentido se for uma entidade (ou espaço) tendencialmente fechada,
limitada aos agentes de dentro, com margens de negociação de obrigações e
direitos muito mais restrita e necessariamente governada de dentro para fora.
O que liga a instituição à
sociedade é o facto de a última outorgar à primeira a legitimidade de gerir
funções específicas em benefício do coletivo. É o caso da família, da religião,
do ensino, das mais variadas associações, dos clubes desportivos, da proteção
civil, entre tantas outras instituições. A sociedade, por seu lado, apenas se
transforma em estado no caso de instituições que tutelam funções de soberania,
sendo que haverá maior liberdade e um estado bem mais eficaz quanto mais
restritas forem as funções de soberania que diretamente tutela (defesa,
segurança, relações externas, justiça, impostos e pouco mais).
Os equilíbrios entre sociedade
e respetivas instituições têm sido sistematicamente colocados em causa pelo
poder avassalador do marxismo cultural. Isto porque a sua génese permite que os
que com ele se identificam vivam de consciência tranquila e tenham as mãos
livres para todo o tipo de engenharias sociais. Na substância, estas
traduzem-se em intromissões abusivas e corrosivas, de fora para dentro, na vida
das mais variadas instituições.
Vimos esse filme nos sistemas
de ensino por via da promoção irresponsável da abertura e aproximação entre a
comunidade, a família e a escola, o que sacrificou a função específica do
ensino, a saber, a gestão de conhecimentos científicos ou académicos num
ambiente institucional autorregulado. Vimos na justiça a partir do momento em
que as tutelas políticas passaram a brincar às engenharias sociais por via de
uma incontinente produção legislativa, o que corroeu até ao limite a dignidade
institucional do exercício da justiça. Vemos no episódio do furto de armamento
militar em Tancos, na senda de outros episódios que têm mantido a instituição
militar na praça pública, em resultado de décadas de militares que se
galanteiam enquanto políticos, mas não menos de políticos que se viciaram na
compra de votos à custa de um pacifismo tão simpático quanto irresponsável, o
que degradou seriamente a dignidade institucional da função soberana da defesa.
Vimos o mesmo filme com a segurança interna quando a polícia foi forçada a
suportar o achincalhamento sistemático da sua autoridade institucional na praça
pública graças a disputas políticas e académicas em torno da proteção de umas
sacralizadas minorias étnico-raciais. Aconteceu com… etc, etc, etc..
E tudo animado por uma
comunicação social carnavalesca.
De resto, o filme de terror do
marxismo cultural segue um guião invariável.
Primeiro, corroem-se os
circuitos econômicos herdados. Porque se nacionalizam empresas e propriedades.
Porque se usa e abusa do ascende do estado sobre a sociedade. Porque se
aumentam as funções e responsabilidades do estado para além do razoável na
compra de suportes políticos e, depois, só resta sobrecarregar as economias de
impostos e dívidas, fragilizando-as estruturalmente. Porque se arriscam
engenharias sociais que desregulam os circuitos econômicos herdados, como
aconteceu em Moçambique em que, no tempo colonial, a economia de mercado e as
economias tradicionais africanas funcionavam em complemento sem grandes
atropelos e, com a independência, tudo foi estatizado em prol de um modelo
socialista estatizante homogêneo que desregulou tanto a economia de mercado,
quanto as economias tradicionais africanas, bastando para tanto imaginar que as
últimas têm valor equivalente ao papel das pequenas empresas numa economia de
tipo ocidental e, uma vez chegada a fome e a guerra pós-coloniais em poucos
anos com os seus milhões de mortos, a culpa foi remetida para as heranças do
“colonialismo” português, para sabotagens dos países vizinhos governados por
minorias brancas, para o Ocidente e, quando foi necessário renovar a linguagem,
para as imposições do “neoliberalismo” e patetices do gênero.
Depois, estranguladas as
economias e condicionadas as liberdades, passa-se à fase da desregulação
sistemática das instituições, geridas como se se tratassem dos espaços abertos
das sociedades onde qualquer ativista sente o direito de meter o nariz. As
consequências perversas a este nível tendem a ser extraordinariamente
perduráveis no tempo.
Em Portugal do século XXI, a
relação moral patológica das esquerdas com o legado desastroso do governo de
José Sócrates e, descontado o intervalo de uma legislatura, com o rumo
preocupante do atual governo de António Costa saltam à vista. O último resiste
sem incómodos de consciência significativos entre os seus apoiantes, mesmo por
cima de dezenas de cadáveres. Não se dá por remorsos, arrependimentos ou
sentimentos de culpa própria por se instigar e colaborar ativamente no
naufrágio de um país ao longo de bem mais de uma década. O socialismo nunca
passará disso.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Observador,
11-7-2017
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