Flavio Morgenstern
A chamada "onda conservadora" é
uma revolta contra o estamento burocrático. O teatro do STF ao julgar o habeas corpus
de Lula pode deixar Bolsonaro mais próximo da presidência.
Foto: Nilson Bastian/Câmara dos Deputados |
O STF pós-mensalão não tem
absolutamente nada a ver com a mesma Corte um ano antes. Hoje não é puramente
técnica, um antro de decisões em latim castiço ignorado pela população. Suas
decisões sobre políticos, que nunca são meramente “técnicas” (do contrário, não
precisariam ser votadas para assegurar alguma chance de
lisura”), são acompanhadas pela população, que faz análises e cobranças das
decisões dos magistrados.
Apesar de o Direito
consolidado parecer uma construção puramente intelectual, fria como um cálculo
científico, é justamente na superfície dos sentimentos que a ideia de justiça
se faz mais presente, e não no abstrato reino das elucubrações
intelectuais, que com tamanha facilidade recaem na ideologia pura. O problema
dos sentimentos é que não são úteis para identificar culpados e nem para sopesar
a punição – no entanto, é na pele e nos nervos em que percebemos a
injustiça, muito mais do que nas cátedras e tribunais.
Os ministros do STF, em um
cenário em que seus onze membros são mais conhecidos do que toda a seleção
brasileira (alguém se lembra de que a Copa começará em 3 meses?), podem até
votar ideologicamente, conforme suas vontades individuais, na maior parte das
vezes a mesma dos presidentes que os indicaram. Entretanto, não serão mais
interpretados pelo povo como “a decisão dos juízes”, e sim “a decisão do
Lewandowski”, “a decisão do Toffoli”, “a decisão do Gilmar” e assim por diante.
Pronunciar as sentenças em voz alta na presença de testemunhas dá mesmo um peso
de sentença valorativa às descrições.
É com sentimentos que
marqueteiros trabalham – aquele monte de samba tocado em campanha eleitoral não
é exatamente tratado de filosofia política argumentativa a rivalizar com Edmund
Burke. E sentimentos, pergunte a qualquer marqueteiro, são canalizados: Collor
era o caçador de marajás, Lula era do “partido da ética” (sic) que
aprendeu a usar ternos Armani e não falar mais “a luta continua” (Duda Mendonça
ensinou ao petista que “luta” remete a baderna).
Quando o STF age com um
extremado, irreal e absolutamente impopular estrelismo e ultra formalismo de
ocasião, citando conceitos como “a produtividade da Corte” pós-meia noite, numa
crise de abóbora de fazer corar a Cinderela, e quando saca bilhetes com
check-in realizados para receber honrarias puramente formais que nada
significam a ninguém, os ministros estão agindo pensando em ritos e em
formalidades infelizmente típicas de tribunais, mas não de uma Corte assistida
de perto pela população.
Isto causa um sentimento único em todo o povo. Amorfo e indefinido, mas certamente relacionado à injustiça. A algo que deveria ter sido feito e não foi. Piorado: a um sentimento de enganação: não contente em não fazerem seu trabalho, o STF decidiu se poderia decidir, então decidiu que tinha o poder de decidir, então demorou muito para decidir que não iria decidir mesmo tendo decidido que poderia decidir, e decidiu pôr fim que só ele pode decidir e que os tribunais que decidiram há tempos, analisando provas e mais provas, não podem decidir enquanto o STF não decidir que vai decidir.
Como a população poderia ficar
inerme e com a sensação de ter deixado a Justiça com as 11 cabeças mais capazes
do país? Como não perceber que muito mais importante do que dominar todo o
Judiciário (o que foi impossível, mas um grande percentual foi conseguido) é
indicar a maioria absoluta de quem votará na última instância e c’est
fini?
Como, afinal, a população
pode confiar no STF – pressuposto mais básico do Direito
e da representatividade, que é simplesmente ignorado ao se falar da
magistratura, só por não serem cargos diretamente eleitos?
O sentimento geral só pode ser
canalizado de uma maneira: indo contra tudo isto que está aí. E, tal como a
“onda conservadora “do mundo, expressado em uma liderança que esteja
interessada em ordem (que não é sinônimo de ditadura – toda liberdade
depende de uma ordem) e em ética.
O Datafolha, que sempre erra para o mesmo lado, já sente a força do
eleitorado de Bolsonaro, não importando o quanto a própria Folha tente tratar
Bolsonaro como Adolf Hitler. Pesquisas internas do PSDB já presumem que
Bolsonaro deve estar com até 10% a mais de votos do que o indicado nas
pesquisas: o seu eleitorado ainda tem receio da mídia e dizer o que pensa em
público. Todavia, quando o STF joga uma pá de cal na igualdade perante a lei
como o fez nesta semana, a tendência óbvia é que um candidato pautado em ordem
e ética ganhe votos, não um candidato como Alckmin, pautado em… bem, em ser o
Alckmin.
Apesar de toda a normalidade
do que Bolsonaro defende – entre outros exemplos óbvios, que nossa
educação é ideóloga e péssima, que nossa segurança pública é a pior do mundo,
que devemos incentivar o cidadão a fazer o bem e não dar benesses pelo roubo
etc. etc. etc. –, a mídia o trata como um “radical” (enquanto propostas
malucóides do PT, do PSOL, e mesmo as deprimentes gestões dos tucanos são
consideradas “ponderadas”, “normais” e, claro, “democráticas”).
É óbvio que o povo não gosta
de Bolsonaro, ou tem medo de admitir em público sua preferência, pelo verniz
que a mídia dá a quem defende que a vovó tem algo a nos ensinar, como se isso fosse
o mesmo do que o Terceiro Reich. Com o STF e seu teatrinho, fica mais fácil
para a população se assumir contra o estamento de mídia e
partidos políticos tradicionais.
A tal “onda conservadora” ou
“populista” que varreu o planeta desde a eleição de Donald Trump nada mais é do
que uma revolta contra o establishment, o velho estamento, as
mesmas pessoas controlando a política, a ideologia, a mídia e os sistemas de
governança não-eleita e transnacional, o que chamamos de “globalismo”.
Todas estas velhas raposas,
que os americanos chamam de Deep State, aqueles velhos sobrenomes
que mandam no país e estão completamente desconectados da preocupação com a
população. Basta pensar que a população tem medo de ser assaltada e morrer por
um celular de R$ 200, enquanto a mídia fala de crianças travestis e respeito a
macumbeiros e mais travestis.
É uma briga entre o que chamam
de “populismo” (usando um termo que antes só usavam para ditadores e
autoritários corruptos) e o Deep State.
O STF se provou a
consubstanciação do Deep State. O sentimento da população é de
revolta absoluta, uma impotência diante de poderosos protegendo os seus
cupinchas enquanto a população quer justiça. O brasileiro médio já sabe que o
STF tem membros petistas, que Lula tem um tratamento injustamente diferenciado
do restante da população (até mesmo do restante dos criminosos condenados, e
até mesmo diante dos políticos poderosos criminosos condenados).
Não há como a população não
juntar forças através de seu próprio sentimento, mesmo sendo xingada pela
mídia, sendo tratada como radical, intolerante, extremista e qualquer tentativa
de chamá-los de fascistas. Ninguém canaliza tão bem a depressão pós-STF quanto
Bolsonaro. Não há a menor chance desse sentimento ser canalizado por Alckmin,
Ciro, Marina ou qualquer outro concorrente.
E é curioso notar o
sentimento petista: não é de trunfo, já que sabe que pegará muito mal rasgar a
lei e a justiça diante do povo. É de explicação. É um “veja bem, veja bem”, uma
tentativa de justificar os atos do STF. É um discurso na defensiva. Como não se
via o PT fazendo desde… nunca.
A Suprema Corte pode
atrapalhar e até fazer Lula ser candidato, que é o maior risco de uma
venezuelização do país. Mas acabou sendo o melhor marqueteiro, para a população
não-militante, do candidato Jair Bolsonaro.
Título e Texto: Flavio Morgenstern, Senso Incomum, 24-3-2018
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