Como explicar a atuação do libertador-mor
do STF a norte-americanos acostumados a uma Suprema Corte técnica e
conservadora?
Ana Paula Henkel
Há mais de uma década morando
nos Estados Unidos, sempre que vou ao Brasil meus amigos perguntam sobre frases
e expressões que os norte-americanos usam no cotidiano, ditados ou jargões como
“agora só preciso da sua John Hancock”, ou “John Hancock na linha e está tudo
certo”, expressões muito usadas quando nos referimos à assinatura de algum
documento. John Hancock, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, foi uma das
figuras importantes da Revolução Americana e o primeiro a assinar a Declaração
de Independência em 1776. Sua assinatura não foi apenas a primeira, mas é a
maior e mais visível no importante documento.
O mesmo acontece aqui na
América. Meus amigos sempre perguntam quais as expressões populares que usamos
no Brasil, aquelas que caem na boca do povo e são faladas no cotidiano. Alguns
deles, fãs de esporte como eu, incorporaram o “fulanão da massa” que usamos no
Brasil quando nos referimos a atletas que em algum momento mágico de uma
partida fizeram a diferença no jogo. Confesso que é impagável ver meus amigos
norte-americanos dizendo “Lebronzão da massa”, enaltecendo as incríveis jogadas
de LeBron James, astro da NBA, ou quando se referem a Tom Brady, marido de
Gisele Bündchen para os brasileiros, mas lenda e ídolo do futebol
norte-americano para os ianques, como “Tomzão da massa”.
E, nessa troca quase diária de
experiências, minha vida fica complicada quando me pedem para explicar aspectos
da política brasileira. Quando o assunto é o STF então… forget about
it.
É complexo tentar explicar o que se passa no STF a um cidadão
norte-americano
Nesta semana, depois de TENTAR
explicar mais uma vez o inquérito das fake news e Alexandre de
Moraes a amigos, um deles me perguntou se todos os ministros da mais alta corte
do Brasil eram tiranetes como ele. Eu disse que não, nem todos. Alguns adoram
legislar, outros adoram editar e há os que preferem soltar bandidos e investigados
com lama até o pescoço. Me perguntaram então quem era esse ministro da Suprema
Corte brasileira, e eu, usando uma boa e velha expressão norte-americana que
quer dizer “bem, vamos lá…”, disse: hold my beer.
Comecei pela mais recente
estripulia dele. Comentei que o ministro Gilmar Mendes tinha decretado a
soltura do secretário de Transportes de São Paulo, Alexandre Baldy, preso por
suspeita de fraudes em contratos da área de saúde e de receber pelo menos R$
1,4 milhão em propina.
Aí fiz um parêntese e contei
que a Justiça havia condenado a União a pagar R$ 59 mil por ofensas do ministro
ao coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, Deltan Dallagnol. Não
bastassem as caras de espanto como se estivessem montando um quebra-cabeça
mental sobre um ministro zombando e ofendendo um homem da lei, parte da
operação (e que meus amigos conhecem muito bem!) que deu um banho de justiça no
Brasil, alguém na mesa indagou: “But wait… Mas ‘a Justiça condena a
União a pagar’ não quer dizer que vocês contribuintes vão pagar essa
conta?!”. Yep, eu respondi.
Curiosos e apaixonados pelo
Brasil, essa foi a faísca para alguém puxar o telefone enquanto conversávamos e
fuçar o Google. Não demorou para o dono do aparelho, curiosamente um bisneto de
um tenente que lutou na 2ª Guerra Mundial contra os nazistas, indagar com os
olhos fitados na tela do celular: “Ele o quê? Ele disse que o Exército
brasileiro se associou a um genocídio?”, referindo-se às declarações de Gilmar
Mendes sobre a atuação de militares no Ministério da Saúde durante a pandemia.
Pronto, o papo na mesa agora
era o excelentíssimo ministro da Corte mais alta da nação brasileira e suas
mais baixas ações. E, como nossos magnânimos tiranetes ainda não conseguiram
amordaçar o Google, a pesquisa não demorou a mostrar a pesada realidade
jurídica brasileira. Ali, diante de nós em números e palavras, o festival de
hipocrisia e o verdadeiro genocídio contra o progresso e a ordem.
Are you ready?
Um incrível apetite para soltar ricos acusados de participar de
esquemas de corrupção
Gilmar Mendes mandou soltar
Marcos Valério, nome-chave do Mensalão e acusado de facilitar a fabricação de
inquérito falso na Operação Avalanche, preso por suspeita de ter intermediado
uma negociação para corromper policiais federais e favorecer uma cervejaria.
Gilmar Mendes mandou soltar o
médico estuprador Roger Abdelmassih.
Gilmar Mendes mandou soltar
Sérgio Côrtes, ex-secretário de Saúde do Rio de Janeiro na gestão de Sérgio
Cabral, acusado de fraudes milionárias em licitações para fornecimento de
próteses para o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia e para a
Secretaria de Saúde do Estado.
Gilmar Mendes mandou soltar
Eike Batista, ignorando o fato de que sua mulher trabalhava no escritório que
defendia os interesses do empresário. Eike foi preso na Operação Eficiência,
desdobramento da Lava Jato no Rio, acusado de repassar US$ 16,5 milhões em
propina ao ex-governador Sérgio Cabral por meio de contratos fraudulentos com o
escritório de advocacia da mulher de Cabral, Adriana Ancelmo.
Gilmar Mendes mandou soltar
Adriana Ancelmo, condenada a 18 anos de prisão por associação criminosa e
lavagem de dinheiro.
Gilmar Mendes mandou soltar —
três vezes — o empresário Jacob Barata Filho. O Rei do Ônibus, como
é conhecido, foi preso na Operação Cadeia Velha, que expôs um esquema de
propina entre empresas de ônibus e políticos do Rio de Janeiro em uma teia que
envolvia também o ex-governador Sérgio Cabral.
Gilmar Mendes mandou soltar
Hudson Braga, ex-secretário de Obras do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio
Cabral, preso na Operação Calicute, braço da Lava Jato no Rio, que investigou o
desvio de recursos públicos federais em obras realizadas pelo governo de
Cabral.
Gilmar Mendes mandou soltar
José Riva, conhecido como o “maior ficha-suja do país”. Riva responde a mais de
cem ações na Justiça por corrupção e improbidade. É acusado de participar de um
esquema de licitações fraudulentas que desviou R$ 60 milhões. Foi preso na
Operação Ararath, que apurava crimes contra o sistema financeiro e lavagem de
dinheiro. Ele tinha como advogado Rodrigo Mudrovitsch. Por incrível
coincidência, Mudrovitsch foi advogado do ministro Gilmar Mendes em alguns
processos e é professor no Instituto Brasiliense de Direito Público, ligado a
Gilmar.
Gilmar Mendes mandou soltar o
ex-governador do Rio Anthony Garotinho, preso na Operação Chequinho, que apurou
crimes de corrupção, organização criminosa e fraudes na prestação de contas
eleitorais.
A excelentíssima caneta que tudo faz para libertar bandidos de
colarinho branco
Not done yet.
Em 2008, com dois habeas
corpus em 48 horas, Gilmar Mendes tirou da cadeia o banqueiro Daniel
Dantas, acusado de envolvimento nos crimes investigados pela Operação
Satiagraha — anulada pelo STJ em 2011 e que já mostrava alguns caminhos que a
Lava Jato vem desvendando. Naquela mesma semana, em 2008, o ministro
concedeu habeas corpus em favor do ex-prefeito de São Paulo
Celso Pitta, do investidor Naji Nahas e de outras oito pessoas também presas
durante a finada operação que poderia ter sido o início da Lava Jato. Além de
gestão fraudulenta e uso de informações privilegiadas, o grupo solto por Gilmar
respondia por formação de quadrilha, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Até meados de 2018, Gilmar
Mendes já havia libertado quase 40 presos da Operação Lava Jato. Presos e
investigados por crimes graves que envolviam quantias estratosféricas de
dinheiro.
Entre um café e outro, meus
amigos ianques liam, estupefatos, o que nos deixa inquietos e atônitos no
Brasil. Bem ali, diante da tela de celular de todos, as manobras toscas de quem
deveria zelar pela ordem jurídica no país. Descobriram que o ministro que
defendeu o uso de mensagens hackeadas contra a Lava Jato e
Sergio Moro não apenas defendeu a soltura do presidente-bandido do Brasil,
Lula, mas votou contra a prisão em segunda instância, concedendo liberdade a
milhares de criminosos e ao bandido imaculado e ilibado de estimação da Corte.
Pedimos a conta de nossos
muitos cafés e, na despedida, um amigo não poderia ter sido mais feliz no
retrato do ministro: “Excelência, ministro… nada disso. Gilmar Mendes é o
Gilmarzão da massa com a John Hancock que adora soltar bandido”. Touchdown.
Título, Imagem e Texto: Ana
Paula Henkel, revista
Oeste, 14-8-2020
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