O Brasil de quem manda não gosta de
liberdade na sua economia
J. R. Guzzo
O comentário mais comum sobre
a saída do empresário Salim Mattar e de outros defensores da liberdade
econômica do governo girou mais ou menos em torno do seguinte enunciado: o
presidente Jair Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes e o Projeto Liberal no
Brasil sofreram uma derrota. Os fatos mostram outra coisa. Bolsonaro não perdeu
nada; sua vida continuará exatamente como tem sido nos últimos trinta anos, ou
desde que entrou na política. Guedes não perdeu um poder que não tinha. O
Projeto Liberal não perdeu porque não existe. O avanço praticamente nulo dos
programas de privatização, o fator principal da decisão de Mattar, não incomoda
em absolutamente nada o presidente da República e as forças que o apoiam,
sobretudo o “Centrão” — como não interessa, da mesma forma, aos que são
radicalmente contra ele. Quanto às outras propostas de tornar um pouco mais
genuíno o capitalismo brasileiro, nada poderia continuar tão igual: foram um
anseio, ou uma esperança, de quem acredita numa sociedade mais livre e capaz de
oferecer mais oportunidades à maioria da população, mas nunca passaram disso.
Depois de um ano e meio de
governo, pessoas como Mattar, gente realista e com uma noção correta do tempo e
dos seus próprios limites, concluíram que sua presença no governo tinha rendido
o que foi possível render. Tentaram, porque quem nunca tenta nunca vai
conseguir o que não tentou; mas sabem muito bem quando uma missão se torna
impossível. A ideia de um Brasil sem estatais e ancorado numa economia
efetivamente livre continua sendo só isso — uma ideia.
Não é realizável na sociedade
brasileira como ela é em 2020, não quando se faz um exame objetivo das
realidades e se leva em conta quem governa de fato este país. A maioria do
Senado Federal e da Câmara de Deputados é contra a privatização; o que querem é
manter privatizada a máquina pública em seu próprio favor, e para isso as
estatais têm de continuar como estão, servindo aos interesses materiais de quem
manda.
O Supremo Tribunal Federal e a
maior parte do sistema Judiciário são contra a privatização. Os inquilinos do
Poder Executivo como um todo, em quaisquer dos seus três níveis, são contra a
privatização. Também são contra os empresários que acham mais cômodo lidar com
o governo do que com os consumidores, a mídia em geral, as classes
intelectuais, os 12 milhões de funcionários públicos e o grosso de suas
famílias, as corporações de todos os tipos — e, no fim das contas, quem não se
sente confortável com os conceitos de concorrência, de mérito e dos demais
componentes da liberdade econômica.
A desestatização atende
unicamente aos interesses da imensa maioria da população brasileira — ou seja,
o seu futuro é muito pouco promissor, como praticamente tudo o que beneficia a
coletividade. Quem age em favor dessa maioria? Ninguém, ou tão pouca gente que
acaba dando na mesma. Só têm voz, representação política e capacidade de
influir os grupos que se organizam na defesa do próprio bem-estar. Jamais
faltará no Brasil quem faça leis em favor de juízes, procuradores, professores
da universidade pública e demais habitantes do bioma estatal.
Jamais haverá escassez de
propostas e de decisões em favor de fornecedores do governo, entidades “de
classe” e cartórios de todas as naturezas. Jamais o Brasil correrá o risco de
incomodar os “direitos adquiridos” de suas minorias. Para não prolongar a
conversa: a tentativa de reduzir a remuneração dos funcionários públicos
durante a epidemia que já matou mais de 100 mil pessoas no Brasil até agora,
mesmo uma redução temporária e acompanhada da diminuição das horas de trabalho,
foi massacrada sumariamente pelo STF. “Inconstitucional”, disseram ali. Até uma
criança de 10 anos percebe que, desse jeito, qualquer tentativa de privatizar
ou eliminar estatais vai acabar sendo declarada ilegal.
Que benefício a
sociedade recebe das estatais?
Empresa estatal é concentração
de renda direto na veia — mais injustiça social, atraso econômico, eliminação
de oportunidades, desigualdade e tudo o que garante o subdesenvolvimento de um
país. É inevitável que seja assim, se os impostos de todos servem para
sustentar o conforto de poucos. O que a população brasileira tem a ganhar, por
exemplo, com a Empresa Brasileira de Comunicações, inventada por Lula e mantida
por Bolsonaro? Ou com a empresa que cuida do “Trem-Bala”, criada por Dilma e
conservada até hoje pelo atual presidente? Só ganham mesmo eles e as suas
clientelas. Não é diferente com o resto de todo esse trem fantasma. Como
poderia ser? A perversidade essencial das estatais está na definição falsa de
sua natureza. Nas teorias de quem tira proveito de sua existência, elas são
propriedade dos cidadãos brasileiros. Mas o sujeito que quiser entrar numa
Eletrobras, por exemplo, não vai passar nem da catraca do saguão. Se tentar,
vai ser posto na rua pelos seguranças de terno preto — cujos salários, a
propósito, são pagos por ele.
Se as estatais pertencem mesmo
aos brasileiros, então por que os Três Poderes da República não entregam a cada
um deles as ações a que tem direito? Em termos práticos: poderiam fazer isso,
se quisessem realmente beneficiar apenas os mais pobres e deixar os ricos de
fora, utilizando os dados constantes do cadastro de 60 milhões de nomes e CPFs
montado pela Caixa Econômica Federal para pagar o auxílio de emergência da
covid-19. Qual é o problema? O problema é que as estatais não são propriedade
do povo brasileiro: isso é mentira. Elas são propriedade exclusiva do Estado e,
portanto, de quem manda na máquina pública. A outra desculpa, a de que essas
empresas existem para servir à comunidade, não fica de pé por 60 segundos. Que
benefício a comunidade recebe da Transpetro, por exemplo? Ou da empresa que
criaram para explorar o “Pré-Sal”?
Em compensação, sabe-se
perfeitamente bem quem paga pelos rombos permanentes das estatais. Só as seis
maiores — Petrobras, Banco do Brasil, Caixa, Correios, Eletrobras e BNDES —
tinham dois anos atrás um passivo trabalhista na casa dos R$ 45 bilhões; na
prática, é dinheiro perdido, como os bilhões que foram roubados dos fundos de
pensão dessas empresas durante os governos Lula-Dilma. Cada centavo disso está
saindo diretamente do seu bolso, a cada vez que você põe um litro de álcool no
tanque ou acende a luz de casa. É essa a distribuição de renda à brasileira — a
renda é distribuída, com certeza, mas sai do bolso de todos e vai para o bolso
de alguns.
As estatais, que vivem, de uma
forma ou de outra, às custas da população, podem eventualmente vender uns
ativos aqui e ali. Mas não se passa disso. As privatizações de grandes
empresas, mesmo do tipo meia-boca, pararam no passado remoto — nos tempos de
Itamar Franco e Fernando Henrique, há quase 20 anos, quando se vendiam empresas
como a Vale, a Embraer, a Light, a Telebrás, a siderúrgica de Volta Redonda ou
os bancos estaduais que serviam de Casa da Moeda para os governadores, seus
amigos e os amigos dos amigos. De lá para cá, é um grande zero. Bolsonaro?
Lula? Tudo a ver.
O Brasil de quem manda não
gosta de liberdade na sua economia. Talvez a melhor imagem dessa cruzada
intransigente em favor do atraso seja um manifesto à nação lançado recentemente
pelo ministro Luís Roberto Barroso, um dos onze “editores do Brasil”,
condenando o “liberalismo” que a seu ver anda por aí. “Liberalismo”? Onde? Não
existe liberalismo nenhum — tanto que Salim Mattar resolveu ir embora. Além do
mais, não há em nenhum dos 250 artigos da Constituição brasileira uma única
sílaba autorizando um ministro do STF a definir o sistema econômico do país;
ele pode, é claro, ter as suas opiniões pessoais a respeito disso ou de
qualquer outra coisa, e se quiser trabalhar por sua aprovação tem a opção de
entrar para a política. Mas, nas funções que exerce, não tem o menor cabimento
ele sair dizendo um negócio desses em público.
Não há possibilidade
praticamente nenhuma de levar adiante um programa sério de desestatização
quando da extrema direita à extrema esquerda, passando pelo extremo “Centrão”
que não larga o osso, estão todos unidos contra o Erário. São eles os que
ganham com a saída de Salim. Quem perde é quem está pagando a conta.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste,
14-8-2020
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