Leio e não acredito. Então
volto a ler: “Quando as pessoas, e alguns políticos, inclusivamente, dizem que
em Angola vigora um sistema ditatorial, isso não é verdade”, sustentou Paulo de
Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Agostinho Neto, em Luanda, numa conferência proferida a convite do
Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas (ISCSP) de Lisboa, subordinada ao tema “Sistema democrático e
direitos de cidadania em Angola”. Para sustentar essa sua convicção, Paulo de
Carvalho contou um episódio ocorrido há tempos na Fundação Mário Soares, em
Lisboa, em que o jornalista e ativista dos direitos humanos criticou o regime
angolano, tendo-lhe o académico respondido: “Se em Angola houvesse um sistema
ditatorial, tu, meu amigo Rafael Marques, não estarias aqui a falar para nós,
estaríamos nós a chorar na tua campa”.
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Paulo de Carvalho |
Agostinho Neto esteve nas mãos
de Salazar. Contudo Salazar não o matou – logo, o regime salazarista foi uma
democracia. Uma democracia exuberante, diga-se, pois Salazar também poderia ter
morto, entre tantos outras importantes vozes contestárias, Álvaro Cunhal, Mário
Soares, etc., etc.
Pinochet poderia ter mandado
matar Pablo Neruda (adiantando-se alguns dias ao tumor na próstata do qual,
efectivamente, morreu o grande poeta). Contudo, não o fez. Logo, o seu regime
foi uma democracia.
Dilma Rousseff, actual
presidente do Brasil, foi presa, no início dos anos setenta, pelo regime
militar que se instalou no seu pais em 1964. Contudo, os militares não a
mataram. Logo, esse mesmo regime militar foi uma democracia.
O assassinato dos jovens
Isaías Cassule e Alves Camulingue, em Maio de 2012, pelos Serviços de
Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), é um pormenor que não parece
incomodar o sociólogo Paulo de Carvalho. Segundo esta curiosa linha de
pensamento, se um democrata consegue fazer ouvir a sua voz, sem ser morto,
então existe democracia – isto mesmo que todas as outras vozes tenham sido
silenciadas.
Sim, Salazar matou Humberto
Delgado (e tantos outros). Porém não matou Mário Soares. Então o salazarismo
foi uma democracia. Sim, Pinochet assassinou o cantor e compositor Victor Jara.
Porém, não assassinou Neruda. Logo, o regime de Pinochet foi uma democracia.
E a vergonha?!
Não há vergonha?! Volto a ler
a notícia da Lusa e sinto vergonha por ele, pelo sociólogo Paulo de Carvalho,
sinto vergonha pelo Presidente José Eduardo dos Santos, sinto vergonha por toda
essa gente que ousa apontar o dedo a um homem como Rafael Marques para lhe
lembrar que ainda está vivo, que podia estar morto, mas que ainda está vivo, e
que deve a vida ao espírito democrático de quem tem o poder para nos matar – e
não o faz.
Nas democracias não se aponta
o dedo a quem discorda de nós para lembrar que o pode fazer, que não morrerá
por o estar fazendo. Nas democracias permitir que os outros discordem não é um
gesto de tolerância (ou de ternura) – é a própria essência do sistema. A
qualidade de uma democracia mede-se pela diversidade de opiniões livremente
expressas.
E é por isso que em Angola não
temos uma democracia.
Título e Texto: José Eduardo Agualusa, Maka Angola, 13-03-2014
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