Aparecido Raimundo de Souza
“Todas essas coisas nos levam a concluir que, a cada dia,
morremos um pouquinho dentro da nossa trajetória de existência”.
Eduardo Arouche – poeta – Aeroporto Salgado Filho, Porto
Alegre.
DURANTE
TODA A MINHA VIDA, nunca pensei, confesso, nunca me passou pela cachola,
sinceramente falando, que um dia fosse me cansar. Cansar, no sentido de
entediar do cotidiano. Comigo foi um
pouquinho pior. Cansei de viver. Hoje, aos sessenta e quatro, compreendo, a
gente se cansa sim. Na verdade, o corpo se amola, se afia se carcome de tudo.
De tudo e de todos. Entretanto, de viver, de viver é quase utópico, surreal,
inimaginável e insano. Apesar disso, aconteceu comigo. Vampiro de alma negra
sigo pois sem rumo no poente estremecido.
Talvez, um dia ocorra com vocês meus caros amigos leitores.
Vocês se entojarão de estar aqui. Geralmente a gente se sente fatigado pelo
árduo do trabalho, de pegar a condução sobrecarregada, tanto para ir, como para
voltar, de segunda a sexta, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Rotina
estressante e comum, todavia, se contínua, acaba pesando na carcaça, se avança,
se desembesta, segue em frente. Nessa refrega, aos trancos e barrancos, sem
parar, sem desistir, seguimos adiante. Decadência sobe à tona, sistematicamente
destoada no normal.
Logo adiante, num bater de asas de um passarinho que acabou
de ser aprisionado numa gaiola, a gente se vê estranhado da casa. Dos cômodos,
dos banheiros, das escadas, da garagem, da empregada, da mulher, dos filhos,
dos problemas que eles arranjam na escola com os coleguinhas. A certa altura da
corrida, não importa a localidade em que estejamos na estrada. Bate sem que se
espere, a sensação de enfraquecimento. A
faina de todo dia toma conta. Causa sofrer vermos os mesmos rostos, os mesmos
amigos. Amigos chatos, companheiros desagradáveis, simpatizantes
inconvenientes. Almas desvairadas, sem eira, nem beira.
Em peso similar, aborrece o parar no boteco da esquina, de
almoçar sempre no restaurante mantido pela empresa... aperreia sentar a bunda na mesa de todas as
refeições, de mandar para o bucho o prato de ontem, namorar a garçonete
loirinha, de pernas perfeitas (apesar de linda e gostosa, acondicionada numa
sainha curta que faz dela um pedaço de mau caminho, o que leva a gente a pensar
sem pensar, num amontoado de ideias pecaminosas). Ideias que não alçam voo e se
perdem em galáxias que não vejo.
Na reverberação da mesma pancada de uma nota destoada do
relógio do destino, vem de contrapeso, uma leseira mórbida dos camaradas que
recontam às velhas e surradas piadas ou, expõem, incansavelmente, as rotinas
das tarefas postas sob suas responsabilidades. Nosso eu interior se abomba dos
parentes, dos irmãos chatos, das brincadeiras sem graça, repetitivas, das
fofocas, do quadro sistêmico que não se altera nunca, das mediocridades que carregamos
para baixo e para cima, como fardos extremamente pesados e danosos à saúde.
Na direção da velha agulha da bússola, o mesmo norte. Gritos
e berros que rasgam o silêncio. O impiedoso ponto convergente se agiganta
semanas após semanas, meses após meses. Embora não querendo, não desejando, a
gente se esfalfa e se esgota de olhar sempre pela mesma janela que dá para a
rua sem saída, os carros, as crianças jogando bolinha de gude, soltando
pipas... sem mencionar as gritarias incessantes. A gente se exaspera das habitações, se
destroça dos vizinhos, a mente miúda pelo contemplar do quintal sem árvores; se
reveste de medo. Não só medo, frio mazelento dos antiquados vasos de plantas,
do lixo acumulado... de topar, na garagem, o carango velho caindo aos pedaços.
Essa bugiganga do tempo do ronca cria vida para os finais de semana, ainda
assim, se sobrar uma merreca para a gasolina, o que nunca vai além de uma volta
rápida pela praia, com a família.
A gente se esbandalha, sai da ordem, se suga, se espevita,
se enfastia de respirar, de deitar todas as noites, de levantar às cinco horas,
tomar o matinal, e, à noite, derrubar num tombo, o cansaço arreliado no sofá da
sala, os assentos carcomidos, fedendo a cachorro. A gente se acumula de nervos
à flor da pele de tanto assistir aos jornais maquiados, com tudo às avessas
dando certinho. Está difícil engolir as propagandas políticas onde cada partido
tem a solução milagrosa e na dose certa para colocar o País no fundo do
desfiladeiro.
Depois dessas celeumas todas, momentos inefáveis. Absorver
as novelas. Sempre repetitivas. A gente se abodega, se ojeriza dos filmes que,
sem apresentar variedades, reincidem numa continuidade azucrinante e doentia.
Enraivece da inconstância das mesmas coisas, sempre, sempre, sempre. Nada muda. Tudo é igual, como um caminhão de
japonês abarrotado, embora vivam anunciando, por aí, que nenhum dia é igual ao
que passou... até pode ser... contudo na pratica, não é assim que a banda toca.
O fato é que chega uma hora, bate uma sensação de impotência,
de ineficácia, de frialdade, de sofrimento reprimido, de sonhos desfeitos, de
planos não realizados. Uma compactação tétrica de causa perdida, de tempo
vivido ao acaso, a esmo, em vão, uma quadra escura, sem futuro, sem hoje e sem
amanhã. É como se o próprio ceticismo pirrônico e birrento que alimentamos no
peito houvesse sido atingido por uma lança afiada e sangrasse pelas veias a
derradeira gota do “eu” espúrio que habita dentro de cada um de nós. Sinto por tudo isso, lobrigo sem tirar nem
pôr, uma magia desencantando ao acaso. Capto a visão apurada de estar prestes a
engolfar o âmago e me remeter empapado de solidão, às profundezas de um nada
enigmático, desbotado, ilegível e sem volta. Não há retorno para o que está
morrendo.
Nessas ânsias açodadas, a gente se pega e se apega abalado,
se vê emocionalmente, tolhido, amarrado, de pés e coração, o semblante vendado,
a goela apertada, indefesa, como se o mundo tivesse despencado do alto de um
rochedo escarpado e escolhesse cair exatamente sobre um cavado na terra que
detém, em seu subsolo, todas as desgraças de um fado inteiro. Tenho a impressão
obsessiva de que o medo que está por detrás do que se esconde, me bate à porta
com um estrondoso ruído de além-fobia não curada, ao tempo em que o sentimento
de um jugo perigoso me interceptará passos adiante (se abrir a guarda), me
desassossegando o espírito e, incontinente, minando a robustez em adiantado
estado de fragilidade.
Na corrida pela sobrevivência nos amofinamos. Nessa redução
gradual das intempéries, se torna pedante as músicas, o romantismo, o amor, o
amar, ou de como amar, de como renovar, a cada novo segundo o carinho pela
consorte, a afeição pelos filhos, o aconchego pela prole que faz parte do
esteio familiar... a gente se amua de tudo. Um sinistro prognóstico de
terremoto me lança à cova do abismo da depressão e do terror. À linha disso, de
não querer mais acordar, pôr um basta, um ponto final, de viver, enfim, é
difícil, complicado, inexplicável, mas não sei cargas d’água, aconteceu comigo. Literalmente entediei. Os cordéis se
entrelaçaram. Os barbantes do respirar se encheram de nós. Grosso modo, meus
prezados amigos leitores. Todo meu ser paulatinamente naufragou e eu... eu me
apouquei de viver.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De Vila Velha no Espírito Santo. 5-1-2018
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É assim a vida e é bonita assim...
ResponderExcluirAparecido, você traduziu em palavras o que ainda ontem senti. Enquanto lia esse artigo, por mera coincidência, ouvi na rádio; "...Quando olho no espelho, estou ficando velho e acabado! (A lua e eu), enfim, com 53 anos, tenho planos que estão "parados" por Falta de grana, então me apego ao plano "B", cinema, teatro, música, livros. Sempre sozinha, sinto-me invisível. Cuido com carinho mas não "participo" do cotidiano das filhas de 20 e 18 (não me convidam). Com o envelhecimento da minha mãe (que teve 14 filhos), ficou uma lição: "Ninguém gosta de velho! Sem generalizar.Dói! (Sinta-se vivo, ainda que cansado você produz. não é um "Peso morto" e eu... "amo sua produção"!!!
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