sexta-feira, 2 de março de 2018

[Pernoitar, visitar, comer e beber fora] A cozinha de João Semana

“Este cavalheiro era João Semana” de Alfredo Roque Gameiro, 1904. Coleção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.
A cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo.

Dou razão nisto a João Semana.

As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras – os galicismos culinários, por exemplo – repugnavam-lhe tanto ao estômago como aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis, dos nossos severos puritanos a outra qualidade de galicismos.

Queria-se ele com a carne bem assada e o arroz do forno açafroado – esses dois importantes elementos de gozo para os paladares portugueses; queria-se com com o prato clássico da orelheira de porco e até com aquele outro prato, tão castiço como qualquer período de Fr. Luís de Sousa – prato que valeu aos Portuenses um epíteto gloriosamente burlesco; queria-se com todas estas iguarias, quase desterradas das mesas modernas, de preferência aos manjares exóticos, cuja nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao conviva o que lhe dão a comer.

Por isso, João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era freguês certo nas mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla de estrangeirices, as velhas tradições nacionais.


Em Portugal, terra de lhaneza um pouco rude, mas não afetada, o dono da casa não costumava dantes experimentar a imaginação dos seus convidados com enigmas culinários.

Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda.

Este costume, graças ao qual parece que os modernos Vatéis misturam às vezes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas um pouco do sal da sátira, era desconhecido entre nós.

Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desideratum a que todas as nomenclaturas aspiram – o de valerem por definições.

Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu anfitrião o que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia: era um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca, afogada... coisas que toda a gente entendia logo. Hoje, a primeira resposta é um nome francês, bárbaro, absurdo, que, contra as promessas da gramática, não dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades; por isso uma segunda pergunta é inevitável; a não querer cada qual resignar-se a comer o que não sabe o que é – tormento insuportável.

Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos jantares, à imitação dos concertos, dos deputados e dos ministros. Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete, para que cada qual procure decifrar o que vai comer e estude a maneira porque se come.

João Semana é que nisto, como em tudo o mais, não queria saber de modas.

E senão vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada do substancial caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida, com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de alface e azeitonas; atacar, com igual denodo, uma porção de roast-beef, não revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguesmente assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles heróis da Ilíada; tudo isto acompanhado de excelente vinho palhete, o qual ele ingeria aos copos de meio quartilho; em seguida uma carregação de peras-de-amorim, sem conta, peso, nem medida...

Durante o jantar não estivera calado João Semana.

Cada prato suscitara-lhe uma reflexão crítica, um discurso laudatório, ou uma anedota que fazia rebentar de riso a Sra. Joana.


Ao descobrir o prato de carne assada, exclamou João Semana, em tom de satisfação manifesta:

– Que tentação me desperta este terceiro inimigo da alma!

A criada riu-se, mas observou:

– Não diga isso; Santo António!

– O quê? Então você não sabe o que disse aquele frade quando estavam a jantar? Nos conventos era costume, enquanto se comia... – Ó Joana, deixe-me ver esse limão – ocupar-se algum frade com leituras devotas. – E vá-me deitando aí mais vinho- – Um dia, a comunidade escutava de um desses reverendos. – O diabo desta faca não corta nada... – um sermão sobre os perigos aos quais os viventes andam sujeitos neste vale de lágrimas.

– Olhe, chegue para aqui essas azeitonas. – Vede, irmãos, dizia o tal frade... – Este ano as batatas não foram grande coisa – ... vede como é difícil fugirmos às tentações dos três grandes inimigos da alma.  – Ó Joana, o padeiro está servindo mal; não tem senão côdea o pão. – O mundo e seus  encantos perigosos; o Diabo e seus poderes maléficos e a carne, ai, meus irmãos... e a carne e suas tentações mágicas.

– Chegando a este ponto, o frade pousa o livro, suspira, estende o prato aos seu vizinho fronteiro, dizendo: – Tão fortes são que nem lhe resisto eu, pobre pecador; uma posta desse terceiro inimigo, que tão bem assado está.

Gargalhada da criada e vitória formal de João Semana sobre o inimigo em questão.

À sobremesa, o mesmo sistema. A pera-de-amorim atraiu um elogio do facultativo e mereceu as honras de um caso.

– Excelente fruta! – disse João Semana, ao comer a duodécima. – Tinha razão aquele frade que do púlpito dizia: “Ó meus amados ouvintes, que miserável é a condição humana! Vede como a desgraça do mundo veio de uma má tentação! Eva perdeu-nos por uma maçã! Se ao menos fosse por uma pera, meus fiéis ouvintes, ainda se poderia desculpar, mas por uma maçã!”

– Ora! Essa é sua, Sr. João Semana – disse Joana rindo. – O frade havia de dizer semelhante coisa! Pois olhe, aqui está quem se perderia mais depressa por a maçã – acrescentou ela, pouco depois e preparando o café.

– Bem, disse João Semana, ao concluir a sua refeição. – Estou como um abade! O pior é ter agora de sair para ir visitar a Srª D. Leocádia.
Texto: Júlio Dinis, in “As pupilas do senhor reitor”, Porto, 1866

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