José Manuel Fernandes
É fácil e popular culpar Israel por todos
os massacres. Mais difícil é perceber que nunca haverá paz enquanto os
palestinianos forem reféns de uma cultura de vitimização mitificada na sua
“catástrofe”
Nakba. A palavra árabe para
“catástrofe”. Nakba, o mito identitário que os palestinianos celebram – o mito
que enquanto for glorificado tornará impossível a paz e continuará a alimentar
uma espiral de violência sem fim. Como a desta semana.
Vimos as imagens de violência,
sabemos que morreram dezenas de pessoas, ignoramos que eram quase todos (50 em
62) operativos do Hamas e logo culpamos acefalamente ora Israel, ora o
Presidente Trump por ter decidido transferir a embaixada dos Estados Unidos
para Jerusalém. Mas quantos procuramos conhecer o significado da campanha de
manifestações e protestos ter sido batizada como a “Grande Marcha do Retorno”?
E quantos fizemos estas
perguntas simples: Retorno para aonde? Retorno de quem? Retorno quando?
A resposta a estas perguntas
dá-nos a chave para a eternização deste conflito sem fim. O retorno de que
falam os promotores destas manifestações “não violentas” é o retorno dos
palestinianos não aos territórios ocupados por Israel há meio século, na Guerra
dos Seis Dias, mas a todo o território de Israel, a todo aquele território que
resultou da guerra de independência de 1948.
O retorno que reivindicam
implica o puro e simples desaparecimento do Estado de Israel. O retorno com que
sonham não comporta a presença de judeus no Médio Oriente.
A reivindicação do retorno
está indissociavelmente ligada à celebração da Nakba, a “catástrofe”, ao que os
palestinianos recordam como sendo a traumática expulsão de centenas de milhares
de árabes das aldeias, vilas e cidades de Israel durante a guerra de 1948. A
reivindicação do retorno traduz o desejo de voltar a travar essa guerra de há
70 anos na esperança de, desta vez, conseguirem o que na altura não
conseguiram: empurrar literalmente os judeus para o mar até que não restasse na
Palestina um só defensor da existência de uma pátria judaica.
Para compreendermos esta
realidade não basta olharmos para as miseráveis condições de vida em Gaza ou
elaborarmos longas tiradas sobre “a maior prisão a céu aberto do mundo”. É
preciso recuar aos turbulentos anos de 1947 e 1948 e, em vez de remexermos nos
arquivos e vasculharmos a memória à procura de quem cometeu mais brutalidades,
mesmo atrocidades, nas diferentes guerras que cruzaram a Palestina entre o fim
do mandado britânico e a consolidação do Estado de Israel – a guerra civil
entre árabes e judeus, a guerra de ambos contra os ingleses e, por fim, a
guerra do nascente estado judaico contra todos os estados árabes vizinhos –,
ficarmo-nos pelo reconhecimento de que se criou então uma nova realidade. E
essa nova realidade chama-se Estado de Israel.
Estima-se que, nessa altura,
700 mil árabes tenham fugido das suas casas nas zonas que ficaram sobre
controle do novo Estado recém-proclamado.
A historiografia ainda hoje se
divide sobre as razões fundamentais desse êxodo. Do lado palestiniano fala-se
de limpeza étnica deliberada. Do lado israelita de uma fuga que teve muitos motivos,
mas que também foi incentivada pelos líderes árabes e palestinianos da época.
Certo é que a maioria dos árabes fugiu então de suas casas, uns em pânico,
outros por não quererem viver sob as novas autoridades, outros ainda forçados a
partir pelo exército judaico.
Mas esses refugiados não foram
os únicos que essa guerra gerou: ao mesmo tempo que os árabes fugiam de Israel,
os países árabes expulsavam centenas de milhares de judeus que neles viviam,
por vezes em comunidades com quase dois mil anos. O destino dessas vagas de
refugiados é que foi diferente – tão radicalmente diferente que em boa parte
explica a teimosa persistência do conflito.
Os refugiados judeus foram
acolhidos por Israel e integrados no país que então nascia. Juntaram-se às
vagas de refugiados que continuaram a chegar da Europa e da então União
Soviética, e se a sua absorção nem sempre foi fácil, ela acabou por determinar
o DNA do novo Estado.
Já os refugiados palestinianos
foram – literalmente – atirados para campos de acolhimento provisórios, mas
onde ainda hoje vivem muitos dos seus descendentes. Os países árabes não os
quiseram acolher. Os vizinhos árabes nem sequer permitiram a constituição de
uma Palestina independente: depois da derrota dos exércitos árabes em 1948, a
Jordânia anexou a região a que então se chamava Cisjordânia – hoje conhecida
por Margem Ocidental – e o Egito tomaria a seu cargo a Faixa de Gaza. Só quase
duas décadas depois, na sequência da Guerra dos Seis Dias, Israel ocuparia
esses territórios, assim como os Montes Golã, a norte, e a Península do Sinai,
a ocidente.
Na prática os refugiados de
1948, espalhados por esses territórios assim como pela Jordânia e pelo sul do
Líbano, ficariam como que reféns da estratégia árabe de nunca reconhecer Israel
e de nem sequer aceitar a presença dos judeus na Palestina. Gradualmente a
Nakba foi-se tornando no principal elemento da identidade palestiniana, uma
identidade que não existia antes, nem no período do Império Otomano, nem sequer
durante o Mandato Britânico. Com o culto e a celebração da Nakba veio também a
reivindicação permanente do retorno, alimentada quer pelo discurso dos líderes
palestinianos (tanto dos moderados como dos radicais) e materializada em
relíquias guardadas nos campos de refugiados e mostradas em manifestações ou
aos jornalistas estrangeiros, como as chaves das casas abandonadas aquando do
êxodo de 1948.
Alguns perguntarão se não é
razoável aceitar esse “direito de retorno” como forma de facilitar a resolução
do conflito. A resposta só pode ser negativa e importa perceber porquê.
Antes do mais, o que é que nos
ensina a história, nomeadamente a história europeia dos séculos XIX e XX, o que
é que ela nos mostra sobre como tem sido possível manter a paz neste nosso
continente? Muitos responderão que foi a União Europeia, mas se investigarmos
um pouco melhor veremos que, para que esta fosse possível, a Europa passou
antes, no quadro da primeira e da segunda guerra, por um gigantesco processo de
transferência de populações.
Recorro ao insuspeito Tony
Judt e à sua obra fundamental Pós-Guerra — História da Europa desde 1945 para
recordar como nesse período as fronteiras foram redesenhadas e as populações
rearrumadas. Ocorreu primeiro, e desculpem a brutalidade dos termos, uma
limpeza étnica genocidária promovida por alemães e soviéticos, depois uma
limpeza étnica profilática pacificamente assumida pelos vencedores. É esta
última que nos interessa, pois é aquela com a qual podemos estabelecer um
paralelo. Os números são impressionantes: a Bulgária transferiu 160 mil turcos
para a Turquia; a Checoslováquia trocou com a Hungria 120 mil eslovacos por
outros tantos húngaros; 400 mil jugoslavos viajaram do sul para o norte do país
para ocupar o vazio deixado pela partida de 600 mil alemães e italianos; a
Checoslováquia, para acabar com o “problema alemão”, expulsou três milhões de
germânicos dos Sudetas, sendo que 267 mil morreram pelo caminho; 623 mil
alemães foram também expulsos da Hungria, mais 786 mil da Roménia, meio milhão
da Jugoslávia e mais de oito milhões da Polónia, neste caso sobretudo devido à
definição de uma nova fronteira, 200 km mais a Ocidente do que a anterior.
O essencial destas
“transferências de populações” foi decidido na cimeira de Potsdam entre as
potências vencedoras e, ao contrário do que previu na altura Anne O’Hare
McCormick, do New York Times, este não foi um “crime contra a
humanidade” sobre o qual a história exerceu “uma vingança terrível” – foi
quando muito, na interpretação de Tony Judt, um crime contra a humanidade que
possibilitou uma nova história. Uma história de paz.
É possível encontrar no
passado do próprio Médio Oriente outros episódios semelhantes (com destaque
para as trocas de populações gregas e turcas na sequência da Primeira Guerra),
mas não vou continuar a dar exemplos. A verdade é que ao nunca aceitarem que a
Nakba criou uma realidade nova e um país novo – Israel –, os palestinianos
nunca procuraram realmente construir o seu Estado, mesmo quando tiveram essa
oportunidade.
A situação na Faixa de Gaza é
disso gritante exemplo. Em 2005 – ou seja, há já 13 anos – Israel retirou
unilateralmente daquele território. Foi uma decisão do governo de um “falcão”,
Ariel Sharon, e o exército teve de intervir para retirar os colonos que se
tinham instalado naquele território que estava ocupado desde 1967. De imediato
os palestinianos invadiram os colonatos e destruíram tudo à sua passagem.
Passado pouco tempo os radicais do Hamas tomariam o poder em Gaza, expulsando a
Fatah, e o território, que tem fronteira com o Egito e poderia ter sido gerido
com interferência mínima de Israel, passou a ser usado como plataforma para
ataques usando mísseis improvisados ou promovendo infiltrações através de
túneis escavados por baixo da vedação erguida na fronteira.
Claro que Israel tem muitas
culpas em toda esta evolução e neste momento julgo que, lamentavelmente, a
maioria dos seus cidadãos já nem sequer acredita numa solução de dois Estados,
aquela que estava prevista nos Acordos de Oslo de há 25 anos. Não sei também se
não teria sido possível evitar tantas mortes nos confrontos associados a esta
“Grande Marcha do Retorno” (mas por isso mesmo não posso falar de “crime contra
a humanidade”, conhecendo como conheço os métodos do Hamas e o seu absoluto
desprezo pela vida dos “mártires” que mandou marchar em direção à vedação
fronteiriça).
Acontece que o meu ponto,
neste artigo, não é esse. É sublinhar a impossibilidade de chegar a algum
acordo de paz enquanto a identidade palestiniana estiver presa à Nakba e à
reivindicação do direito de retorno, enquanto persistir numa cultura de
vitimização e rejecionismo, o que significa que está prisioneira do conceito
irredentista de que a própria existência de Israel é um ato de colonialismo e,
por isso, um Estado ilegítimo que tem de desaparecer.
E também enquanto, para
alimentar esse mito, os mais altos responsáveis palestinianos continuarem a
defender que nunca houve judeus na Palestina, que nunca houve sequer um Templo
de Salomão no monte onde hoje se situa a Esplanada das Mesquitas em Jerusalém
ou mesmo que o Holocausto é uma invenção para justificar o apoio do Ocidente a
Israel. Trata-se de um discurso adotado ao mais alto nível, mesmo pelos supostos
moderados: ainda no passado dia 30 de Abril, num discurso ao Conselho Nacional
Palestiniano, Mahmoud Abbas, o sucessor de Arafat, defendeu que Israel “é um
corpo estranho nesta região” e que o Holocausto sucedeu por causa do
“comportamento social” dos judeus, nomeadamente por serem banqueiros. É verdade
que já pediu desculpa por essas palavras, mas será que podemos acreditar na sua
sinceridade quando na sua tese de doutoramento contestou os números do
Holocausto e acusou os sionistas de colaborarem com os nazis?
Poderão os palestinianos algum
dia ultrapassar este trauma? Poderão algum dia encarar a Nabka como uma das
bases da sua identidade, mas não como uma catástrofe que tem de ser revertida e
vingada? É que enquanto isso não suceder não terão condições para construir um
Estado capaz de viver ao lado de Israel, nem para serem uma nação capaz de se
rever nos seus feitos e não nas suas derrotas.
Por isso não se iludam: a
“Grande Marcha do Retorno”, o protesto que encaminhou dezenas de milhares de
pessoas contra as vedações que separam Gaza de Israel nunca poderia ser
definido como uma manifestação pacífica, antes como um chamamento à guerra. E
foi precisamente a isso que assistimos.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
16-5-2018
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