sábado, 5 de maio de 2018

Palavras mal ditas

João Pereira Coutinho

O que diriam os europeus se a China, depois de ter descoberto o caminho marítimo para a Europa, inaugurasse em Pequim um museu para celebrar o “descobrimento” dos europeus? Confesso que me seria indiferente


FERNANDO MEDINA TINHA UM SONHO: abrir em Lisboa um "Museu dos Descobrimentos". Mas Medina, com pouca sensibilidade cultural, não ouviu algumas luminárias sobre o assunto, que o teriam demovido da sua aberrante ambição.

Felizmente, as luminárias reuniram-se em carta aberta e tentaram moralizar os rústicos sobre o problema da palavra "descobrimento". Dizem eles que a palavra remete-nos para o mundo dos séculos XV e XVI – eurocêntrico, claro –, reduzindo os povos e os territórios "descobertos" a meros sujeitos passivos da história. A ideia, ridícula e insultuosa, de que os portugueses "descobriram" o que quer que seja só é aceitável se tomarmos como perspectiva o nosso pequeno, insignificante e absolutamente risível canto geográfico.

E os autores da missiva vão mais longe: o que diriam os europeus se a China, depois de ter descoberto o caminho marítimo para a Europa, inaugurasse em Pequim um museu para celebrar o "descobrimento" dos europeus?

Confesso que me seria indiferente. Porque, na minha indiferença, talvez resida o multiculturalismo em estado são: se todas as civilizações têm igual validade cultural, podemos concluir que é inteiramente legítimo que os chineses tenham o seu ponto de vista sobre a história, mesmo que esse ponto de vista não coincida com o nosso ponto de vista.

Acontece que as luminárias da carta aberta, em nome da tolerância e da compreensão do Outro, cometem o erro primário de se esquecerem dessa tolerância e dessa "compreensão" para uma civilização em particular: a "civilização ocidental". Como lembrava o filósofo Roger Scruton, esse é o paradoxo dos "fanáticos da tolerância": eles pedem respeito para todos os povos, exceto para um povo em particular. Por sinal, o povo a que pertencem.

Só isso explica que, para aquelas cabeças confusas, os portugueses estejam interditos a qualquer "narrativa" sobre o seu passado. O que eles não teriam a coragem de dizer sobre uma tribo africana é abertamente defendido contra a tribo ocidental.

Cuidado, luminárias: o racismo invertido não deixa de ser uma forma de racismo.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, SÁBADO, nº 731, de 3 a 8 de maio de 2018

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