sexta-feira, 26 de outubro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Porto solidão

Aparecido Raimundo de Souza

EUCLÉSIO PITANGA SÓ QUERIA que ela ficasse quieta dentro de casa. Passiva e obediente. De preferência ao seu lado. Que circulasse por todos os cantos da linda e acolhedora mansão estilo mediterrâneo (mas que) não ultrapassasse por nada deste mundo o portão sisudo que dava para a fuça desengonçada da rua. Maria Sururu não ligava à mínima. Tudo o que o namorado falava entrava por um ouvido e saía por outro. Quando não levava a cabo seu intento se perdia no meio de algum acesso para lugar bem longe dentro de sua imaginação.

Desnuda de todos os preconceitos sofria as saudades que abraçavam seu espírito combalido. Fazia quase seis meses que rolava um clima com Pitanga. Ele a princípio lhe parecia ter caído do céu. Bem lá do alto. Chegou a acreditar no varão que pedira a Deus. Contudo com o passar dos dias o relacionamento começou a enveredar por vias de acessos não traçadas notadamente aquelas que ela preliminarmente se olvidara projetar para sua vidinha cotidiana.

Euclésio uma semana depois dos trapos cuecas e calcinhas dormindo na mesma gaveta mudou radicalmente da água para o vinho. Botou as unhas de fora sem cerimônias (não só as unhas) as garras também a ponto de Sururu chegar à conclusão que Pitanga em nada diferia de seu “caso anterior” – o Alagoano Forrobodó Mijudo – um negrão de quase dois metros de altura que passava a maior parte do tempo no xilindró por envolvimentos com o tráfico de drogas. Foi um sacrifício hercúleo se livrar de vez da figura.

Teve sorte porque inexplicavelmente numa noite de sexta-feira (treze) Alagoano Forrobodó Mijudo em troca de tiros com a polícia acabou virando defunto. Vítima de várias azeitonas nos peitos com caroços e tudo. Antes desta cria Maria Sururu viveu dois anos com Darci do Cavaco. Rapaz de boa família pobre (porém honesta) barrigava os dias tocando aqui e ali – ora num bar – ora em um boteco de periferia para ganhar uns trocados.

Não largava do seu instrumento (que herdara do pai ainda em tenra idade) nem por reza braba. Chegava a ser chato. Maria gostava dele demais. Havia um único empecilho que estragava a festa. Na hora de ir para a cama. Extremamente obeso e pesadamente paquidermiado quando resolvia misturar os suores e revirar os olhinhos quase matava a companheira devido às carnes banhentas e a robustez de sua carcaça descomunal. Para complicar Darci não aceitava transar naquela posição em que os machos se deitam (maviosos e gentis) sob as fogosidades orgásticas das fêmeas.

Nervoso e inquieto a pele rubicundada exigia vir por cima (papai e mamãe) como um garanhão desengonçado. Não abria a guarda. A coitada da Maria esquelética, os ossos à mostra nestas horas em meio a um ardor nos pulmões, perdia o fôlego. Quase morria esmagada e sem ar. Afora isto o adiposo duro na queda guloso voraz e esganado não se contentava com umazinha. Pedia bis. Queria mais e mais e mais. Num desses mais o lado tugúrio (onde ficava o estreito do valhacouto da gaiola) é o que sentia sobremaneira o peso vultoso de todas as indecências emergidas. Realmente nesse quesito o abrolhado e massudo se mostrava afoito intrépido poderoso potente e esfomeado.

Muitas vezes depois de servir as lascívias do desengonçado Sururu baixava ao pronto socorro (aos prantos) com fortes dores nas costas metade da língua para fora entre outras coisas que nem devem ser trazidas à baila. Tanto fez tanto mexeu que belo final de semana conseguiu mandar Darci passear levando na bagagem seu cavaco a tiracolo. A “mala sem alça”, a bola da vez do momento agora sem dúvida alguma o espevitado Euclésio. A criatura resolvera grudar no pé. Logo no dela, coitada! Não dava trégua o abestado. Vigiava, seguia, botava gente atrás. Numa destas se disfarçou de cachorro abandonado. A carrocinha da prefeitura passou e levou a desgraça.  Não se sabe como um mês depois conseguiu fugir e voltar.

Regressou pior. Com um ciúme doentio triplicado que estragou os bons momentos que passaram juntos. Ao oposto de Cavaco e Alagoano Pitanga só tinha uma coisa de bom em seu currículo. Reunia num só conjunto de taras e malogros elevada posição na sociedade. Dinheiro à beça nos bolsos prestígio e conhecimento junto às autoridades. Mandava e desmandava no delegado. Fazia e desfazia do juiz e do promotor. Ambos comiam em suas mãos. Esse amor meio que aos trambolhões poderia até ter dado certo. Sururu gostava dele. Não amava, gostava. Gostava um bocado.  A seu modo. O homem não sabia dar carinho, dizer palavras melosas no ouvido, construir frases bonitas e jogar charme.

Era elegante fino e bem-apessoado. Isso era mesmo, ninguém poderia dizer o contrário. Só pecava porque o sentimento de um querer inquieto de um desejo de posse inconsequente e doentio falava mais fundo. Fluía no sangue como um mal incurável que não sarava e nem dava sinais de melhoras. Desta forma por estas e tantas não ditas - apesar de se achar a mulher perfeita e como tal se sentir feliz e realizada ao lado do sujeito Sururu acabou concluindo que homem nenhum por mais charmoso e obsequioso que fosse não reunia num só bio (o tipo) os requisitos essenciais a ponto de formar a figura ideal do par perfeito.

Ela em suas viagens pelo mundo fantástico das quimeras mal sonhadas havia imaginado um ser incomum e irreal. Literalmente atípico e utópico. Movida por traumas bobos trazidos dos tempos de menina do grupo escolar levada à consciência mal desabrochada de seus devaneios de mocinha. Por isto sofria. Muito. Morria por dentro aos poucos. A realidade cruel e insossa vinha de forma brusca e derrubava por terra seus ardores juvenis frustrando suas quimeras com relação ao futuro. Não que não tivesse amado o Alagoano. Por todos em particular nutriu um amor diferente. Da mesma forma aconteceu com Darci.

Cada um trazia seu cada um como se fosse à primeira vez de um peido não anunciado. O primeiro peido é como o sutiã. Nunca a donzela se esquece dele. Assim acontecia com Pitanga. Esse gostar o desejar infindo o se sentir nas nuvens ao lado do rapaz lhe fazia um bem dos diabos. Entretanto a base sólida o relacionamento se assemelhava a uma disenteria que vinha de repente muito forte e depois de certo tempo cessava. Estancava de vez e fim de papo. Bastava cagar evacuando todas as podridões que a levavam às carreiras ao banheiro mais próximo. O ciúme em excesso a falta de confiança desviou de vez as sendas da rota natural.  A separação das alcovas não se fez esperar. Euclésio queria que ela ficasse quieta, enclausurada, trancafiada, submissada, sem poder sair de casa.

Como uma prisioneira sem correntes vegetando as horas em uma espécie de cela de porta aberta se viu órfã da própria solidão que a consumia numa delegacia romanesca e fictícia. Impedida de meter os pés fora dos limites do enorme portão da bela e soberba construção seu tempo no agora das coisas se transformou numa forma estranha de pesadelo. Um tormento que não findava. De fato não findou. Entrementes num piscar não programado a gota d’água transbordou o copo. Logo em seguida deu o ar final da enchente e fez com que Maria Sururu sumisse correndo dentro de seus delírios desvairados de lágrimas. 

Não se escondendo dentro de si mesma em paralelo oculta entre uma brecha sombria um elo perdido do qual jamais conseguiu retornar. Foi assim. Aconteceu exatamente assim. Apareceu subitamente sem cor e destituída da beleza natural que lhe dava o encanto e a tornava quase princesa. Deixou Maria Sururu Euclésio Pitanga internado num hospício da capital.  Por si mesma escafedeu na fumaça como quem caça o infinito. Seu corpo boiou na correnteza clara de infindos mistérios (até hoje indecifráveis) do rio calmo e comprido que serpenteia como uma gigantesca cobra cortando majestoso o pequeno e rupestre lugarejo perdido enterrado enfurnado dentro de lugar nenhum. 
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Sertãozinho, interior de São Paulo. 26-10-2018   

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