Onze indivíduos decidiram que 210 milhões
de cidadãos estão sujeitos à obrigação de só tomar conhecimento daquilo que
eles, os ministros do Supremo, decidem que é “verdade”
J. R. Guzzo
O Supremo Tribunal Federal é
hoje o principal produtor do pensamento totalitário no Brasil. Como em geral
acontece com forças políticas que, por uma causa ou por outra, adquirem a
possibilidade de agir sem ter de respeitar nenhum limite, o STF passou
rapidamente da ilegalidade para o disparate, e do disparate para o delírio — é
onde estamos no momento. A má notícia, no caso, é que a elite pensante do
Brasil, a mídia e os demais poderes da República aceitam essa degeneração do
seu principal tribunal de Justiça com uma passividade sem precedentes na
história nacional. A notícia pior é que vai continuar assim. Comportamentos de
ditadura, como Roberto Campos dizia a respeito dos regimes “de esquerda”, não
são biodegradáveis — quer dizer, não se desmancham naturalmente com o passar do
tempo. Ao contrário: ditaduras, quando não encontram barreiras, ficam cada vez
mais ditatoriais.
É o que está acontecendo na
frente de todo o mundo, todos os dias, neste Brasil onde o STF deu a si próprio
o direito de dizer que 2 + 2 são 22 — e onde é inconstitucional achar que são
4, porque quem diz que o certo é 22 são os ministros do STF, e, se eles estão
dizendo que é assim, trate de calar a boca, obedecer e continuar pagando
impostos. A Constituição, as “instituições” e a lógica são unicamente o que
eles dizem que são — conversa encerrada. O STF só não revoga a tabuada, o
ângulo reto ou o ovo frito porque os ministros não ganham nada com nenhuma dessas
decisões; mas naquilo que eles consideram ser os seus interesses está valendo
tudo. O resultado é que esse STF que está aí perdeu as características próprias
da sua espécie biológica — a espécie das cortes de Justiça, cuja finalidade é
fornecer aos cidadãos a segurança da lei. Já não se trata mais, a esta altura,
de vinho que degenerou em vinagre. Agora é vinagre que está degenerando em
veneno. Seu último surto de onipotência é a extraordinária pretensão de pensar,
do ponto de vista legal, pelo povo brasileiro.
O portador dessa nova verdade
é o presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, que anunciou ao público, nesta
última terça-feira, dia 28, que o tribunal decidiu (oficialmente, ao que
parece), ser “o editor de um povo inteiro” — no caso, o povo do Brasil. Editor
de um povo? Que raio quer dizer isso? Quer dizer o seguinte: é o STF quem
decide as informações que você pode ou não pode receber. Toffoli estava
tentando dar uma explicação para um dos empreendimentos mais inexplicáveis que
o Supremo realiza no momento: o inquérito ilegal das “fake news”, que
atribui a si mesmo a inédita ambição de só permitir que se diga “a verdade” em
tudo o que aparece na internet. Como sempre acontece nesse tipo de
tentativa, conseguiu elevar à potência N o que já é um desastre top de
linha. Num português de ginásio, com sintaxe torturada, soluços entre verbo,
sujeito e pronome, e compreensão confusa do vocabulário, Toffoli disse que o
STF está violando a liberdade de expressão, conforme mostram os fatos objetivos
do inquérito, porque tem de “dirimir conflitos”, como numa “briga de marido e
mulher”. Heinnnnnn?
Toffoli acha
que um órgão de imprensa, um ente da vida privada, é a mesma coisa que uma vara
ou um tribunal de Justiça
Não se alarme se você não
entendeu, porque é duro mesmo de entender. O que o ministro quer dizer é que o
Supremo tem o direito e o dever de proibir que um cidadão diga isso ou aquilo
nas redes sociais quando achar que é mentira — afinal, alguém tem de resolver
se alguma coisa é mentira ou verdade neste país, não é mesmo? Então: esse
alguém, segundo Toffoli, é o STF. Não cabe ao público julgar por si mesmo o que
é publicado na internet — e acreditar ou não naquilo que leu,
viu ou ouviu. Quem tem de fazer isso por ele são os ministros. É a coisa mais
normal do mundo, pelo que se pode deduzir do manifesto que o presidente da
nossa Suprema Corte lançou sobre a questão. Seguem-se, exatamente como foram
ditas, as palavras de Toffoli. Não é a Revista Oeste que está
dizendo nada disso — é ele mesmo. Vamos lá.
“Todo órgão de imprensa tem
censura interna”, informa o ministro. “Em que sentido? O seu acionista ou o seu
editor, se ele verifica ali uma matéria que não deve ir ao ar porque ela não é
correta, ela não está devidamente checada, ele diz: ‘Não vai ao ar’. Aí o
jornalista dele diz: ‘Mas eu tenho a liberdade de expressão de colocar isso ao
ar?’ Entendeu? Não é à toa que todas as empresas de comunicação têm códigos de
ética, códigos de conduta, de compromisso. Nós, enquanto judiciário, enquanto
Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um
povo inteiro.” Segue-se uma salada mista com a história da “briga de marido e
mulher”, a informação de que o juiz tem de “editar” os conflitos, a necessidade
de fazer a “interpretação jurisprudencial hermenêutica” e coisas tão espantosas
quanto essas. É cômico, mas não ajuda a entender coisa nenhuma. Melhor ficar
por aqui mesmo.
Não é fácil encontrar tanto
despropósito junto num espaço tão curto de sentenças. Toffoli acha que um órgão
de imprensa, um ente da vida privada, é a mesma coisa que uma vara ou tribunal
de Justiça. Um jornal, ou qualquer veículo de informação (ou “plataforma”, como
se diz hoje), publica ou não publica o que acha que deve, como lhe assegura a
lei; não obriga ninguém a fazer nada, ao contrário de uma decisão judicial, que
tem de ser obedecida por todos. Nem vale a pena perder mais tempo com
raciocínios que não seriam aprovados numa boa prova do Enem. O que importa é o
tóxico de primeira grandeza que está contido na ambição de “editar um povo
inteiro” — ou seja, de proibir ou de permitir o que as pessoas devem ler, ver
ou ouvir nos meios de comunicação digitais. Tem de ser assim porque os onze
indivíduos que despacham no STF decidiram que os 210 milhões de brasileiros, a
partir de agora, estão sujeitos à obrigação de só tomar conhecimento daquilo
que eles, ministros, decidem que é “verdade”. Talvez nem a Alemanha de Hitler
tenha se metido a tanto. Tinha até um Ministério da Propaganda, que entrou na
história como um grande clássico da depravação política universal, e uma
polícia secreta que podia prender e matar quem o governo considerava
subversivo. Mas, tanto quanto se saiba, nunca teve a ideia de dar ao professor
Joseph Goebbels, um dos principais símbolos da alma nazista, o papel de
“editor” do “povo inteiro” da Alemanha.
Em qualquer
sociedade democrática do mundo as decisões do ministro Moraes já estariam anuladas
O pronunciamento do Supremo
sobre a verdade, como se poderia esperar, veio logo depois do mais recente
acesso de censura por parte do ministro Alexandre de Moraes e de seu inquérito
anticonstitucional. Em mais uma violação direta ao que está escrito no artigo
5º da Constituição Federal — “é livre a manifestação do pensamento” — ele
mandou bloquear 16 contas de aliados do presidente Jair Bolsonaro no Twitter e
12 perfis do Facebook, com multa diária de R$ 20 mil reais para as empresas que
operam esses serviços, caso não obedecessem imediatamente ao seu decreto.
Quando alguém tenta acessar um dos punidos, encontra o seguinte aviso: “Conta
retida”. Segue-se, em inglês mesmo — que nenhum cidadão brasileiro é obrigado
legalmente a entender —, a frase: “Account has been withheld in Brazil in
response to a legal demand”. Ou seja, as contas e perfis estão suspensos em
consequência de questões legais. Se isso não é censura, então o que é?
Nada está certo nessa
aberração. É como na doutrina jurídica da “árvore envenenada”, tão importante
no direito dos Estados Unidos — se uma árvore produz veneno, todos os seus
frutos são venenosos. É simples. Se a polícia violou a lei ao obter uma prova
qualquer, todas as acusações vão para o lixo. Um inquérito ilegal só pode
produzir ilegalidades; em qualquer sociedade democrática do mundo as decisões
do ministro Moraes já estariam sumariamente anuladas. A Constituição, no
entender do direito público das sociedades livres, existe unicamente para
defender a população das agressões que possa vir a sofrer por parte do Estado.
No Brasil, o STF está fazendo justamente o contrário: os ministros usam a
Constituição para defender a si próprios dos cidadãos de quem discordam.
Millôr Fernandes, numa das
melhores definições já feitas até hoje de um regime político, diz que o
comunismo é o contrário do trabalho dos alfaiates. Na hora da prova, se o terno
não ficou bom, o alfaiate faz os ajustes na roupa. O comunismo faz os ajustes
no cliente. É o nosso STF, exatamente: ajusta as pessoas ao Brasil que existe
nas suas cabeças e nos seus desejos.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, 31-7-2020, 8h59
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-