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Arte: Paulo Márcio |
Às vésperas dos 40 anos da redemocratização,
deputados diminuem o poder do parlamento e pedem que a Justiça tome as decisões
que lhes compete tomar
Nuno Vasconcellos
“A esperteza, quando é muita,
fica grande e come o dono”. Esse ditado mineiro era repetido com certa
frequência pelo ex-presidente Tancredo Neves — um dos grandes mestres da
política brasileira. Conhecido por buscar a conciliação diante de impasses
delicados, ele também ficou famoso pela firmeza nos momentos difíceis. Jamais
deixou de tomar as decisões que lhe cabiam nem de partir para o confronto se
fosse necessário. Por sua capacidade de fazer política, Tancredo, ao lado do
deputado Ulysses Guimarães e de outros políticos maiúsculos, conquistou o apoio
da sociedade e liderou o processo que levou ao fim do regime militar e deu
início à redemocratização do Brasil.
A trajetória de Tancredo é
mencionada aqui por uma razão simples: no próximo sábado, 15 de março,
completam-se 40 anos do dia em que ele deveria ter assumido a Presidência da
República. Na véspera da posse, ele sentiu dores e foi internado às pressas no Hospital
de Base, em Brasília. Transferido para São Paulo, morreu pouco mais de um mês
depois, em São Paulo. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente José Sarney. A
rota traçada por ele, no entanto, parecia forte o bastante para fazer do Brasil
uma democracia sólida, inclusiva e socialmente justa.
A obra não está completa. A democracia brasileira, ao longo desses quarenta anos, tem sido submetida a dezenas de testes e sobrevivido a todos eles. Seus limites têm sido testados em várias ocasiões e, sem descer a detalhes em relação aos episódios mais críticos, ela sai de cada um deles mais forte do que entra. É nítido que, mesmo com todos os altos e baixos que enfrentou, o país teve nesse período avanços importantes tanto no campo da economia quanto no cenário institucional.
Ainda há muito trabalho pela frente. Quem acompanha com atenção tudo o que vem
acontecendo no país ao longo desses quarenta anos se dá conta de que a
democracia, por mais sólida que se mostre a cada momento, sempre precisa ser
protegida. Também fica claro que nem tudo o que é feito em nome dela contribui
para fortalecê-la.
Isso mesmo! A cada dia fica mais evidente que é muito mais fácil bater no peito e se apresentar como defensor da democracia do que praticar os princípios que consolidam esse regime. É muito mais fácil culpar os adversários por todos os riscos que ela corre e querer destruí-los com as armas fornecidas pela própria democracia do que conquistar a sociedade e obter apoio suficiente para fazer com que um determinado ponto de vista se sobressaia e oriente as decisões que se aplicarão a todos.
VITÓRIAS NO TAPETÃO
Na democracia, que, conforme
dizia o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill, “é a pior forma de
governo, com exceção de todas as demais”, as pessoas em posição de destaque
precisam ser lembradas o tempo todo de que “a esperteza quando é muita”, como
citava o doutor Tancredo, “fica grande e come o dono”. Infelizmente, porém, as
demonstrações de “esperteza” têm surgido com frequência.
Elas se manifestam, por exemplo, nas atitudes mais corriqueiras que senadores e deputados tomam para se impor sobre os adversários. Sem votos suficientes para fazer com que seus interesses triunfem, eles apelam para outros poderes para tentar ganhar no “tapetão” as batalhas que não têm força nem competência para ganhar no parlamento.
Exemplos dessa prática estão
por toda parte. Um dos mais recentes foi dado pelo líder do PT na Câmara dos
Deputados, Lindbergh Farias (RJ), por seu correligionário Rogério Correia (MG)
e por Guilherme Boulos (PSOL-SP). Na semana passada, o trio resolveu transformar
a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro em alvo de suas ações. De uma hora para
outra, Farias, Correia e Boulos cobraram da Procuradoria Geral da República
explicações sobre um inquérito que envolve a mulher do ex-presidente Bolsonaro.
Não satisfeitos, solicitaram à Polícia Federal, à Controladoria Geral da União
e à Casa Civil da Presidência da República rigor nas investigações em curso
contra Michelle.
Em suas petições, suas Excelências exigem detalhes sobre os gastos de Michelle com cartão corporativo durante o mandato do marido, concluído mais de dois anos atrás. Querem, também, apurações sobre as transferências de dinheiro que ela teria recebido das contas correntes do marido.
A movimentação não nasceu da revelação de nenhum fato novo em relação à conduta
de Michelle durante a presidência de seu marido. Tudo, conforme os próprios
autores admitem, não passou de uma estratégia esperta dos parlamentares de
utilizar recursos públicos para obter benefícios privados. Tudo o que querem,
ao mobilizar o aparato estatal contra Michele, é tentar conter o bombardeio de
críticas e até mesmo de petições que vêm se avolumando contra a atual
primeira-dama, Janja da Silva. Para “cada requerimento contra Janja nós vamos
apresentar dois contra Michelle Bolsonaro”, ameaçou Lindbergh Farias em suas
contas nas redes sociais.
“A TURMA DA RACHADINHA”
Sem querer jogar lenha na
fogueira na “guerra das primeiras-damas”, que muita gente insiste em alimentar,
e, menos ainda, sem a intenção de antecipar o debate sobre a possível presença
do nome de Michelle entre as alternativas para a corrida eleitoral que só terá
seu desfecho no final do próximo ano, é bom refletir sobre esse tipo de
atitude. Uma das acusações mais graves feitas à ex-primeira-dama pelos
deputados, vejam só, é de prática de rachadinha. Na postagem em que o líder do
PT declara guerra contra Michelle em defesa de Janja ele diz que “a turma da
rachadinha com cartão corporativo não tem moral”. É aí que a situação fica
ainda mais interessante.
Se a suposta prática da
rachadinha é sintoma de falta de moral para os adversários, ela é aceita,
perdoada e, talvez, até aplaudida como um sinal de “esperteza” quando feita por
aliados! Relator, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, do processo fartamente
documentado contra o governista André Janones (Avante-MG) por prática explícita
de rachadinha, o deputado Guilherme Boulos, um dos signatários das ações contra
Michelle, pediu no ano passado o arquivamento da matéria. Ele não viu, no
episódio escandaloso protagonizado por Janones, razão suficiente para pedir a
cassação do “rachador” confesso. Por mais claras que fossem as gravações em que
o parlamentar governista exige dos funcionários de seu gabinete uma parte de
seus salários, elas não foram vistas por Boulos como provas suficientes para
condenar o companheiro.
No inquérito conduzido pela
Polícia Federal, ficou claro que Janones não apenas exigia que os funcionários
depositassem dinheiro em sua conta como usava o cartão de crédito de um dos
assessores para pagar suas despesas pessoais. A lista de crimes é extensa, mas,
na semana passada, a PGR resolveu passar uma borracha e deixar tudo por isso
mesmo. E ofereceu ao parlamentar governista um Acordo de Não Persecução Penal
que o livra de qualquer responsabilidade pela prática. A única punição, se é
que se pode chamar isso de punição, será o pagamento de uma multa modesta (só
para não perder a anedota: resta saber a origem do dinheiro que Janones
utilizará para fazer o pagamento).
LESA-PÁTRIA
Já pensou se, na resposta ao
pedido dos deputados contra a suposta “rachadinha” praticada por Michelle, a
PGR se valer do rigor que não utilizou contra o companheiro Janones? Seja como
for — e por mais decepcionante que tenha sido a tibieza da “punição” aplicada
contra o réu-confesso —, o que interessa discutir aqui é o hábito recorrente
dos parlamentares que entregam a outros poderes o direito de dar a palavra
final sobre decisões que lhes competem. Sim. A ação dos deputados em defesa de
Janja teria sido justa, defensável e até elogiável se tivesse ficado
circunscrita aos limites do parlamento. O mesmo vale para os ataques a Eduardo
Bolsonaro. Acontece que o ato de abrir mão da própria autoridade e entregar nas
mãos do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Supremo Tribunal
Federal o poder de decidir em seu nome tem sido uma manifestação de esperteza
recorrente por parte de parlamentares.
Na semana retrasada, Lindbergh
e Correia registraram no STF uma ação contra o deputado Eduardo Bolsonaro —
filho do ex-presidente Jair e favorito para assumir a presidência da
estratégica Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Os petistas pediram que
a Corte retenha o passaporte do deputado e que o investigue criminalmente por
“articular ações contra o STF” junto a políticos norte-americanos. Segundo o
pedido, Eduardo teria cometido crime lesa pátria e atentado contra a soberania
nacional ao criticar o atual governo e o Poder Judiciário do Brasil em um
evento recente com políticos conservadores nos Estados Unidos.
Ora, ora, ora... como
parlamentares que são, em pleno exercício de seus mandatos, num ambiente que,
até segunda ordem, lhes assegura mecanismos de ação dentro do próprio poder
Legislativo, os deputados jogam por terra a importância do próprio cargo ao pedir
que os poderes Executivo e Judiciário ajam e decidam por eles. Ou seja,
renunciam ao poder de realizar aquilo que eles foram eleitos para fazer. A
impressão que se tem é a de que, na verdade, se esquivam do confronto legítimo
de ideias no espaço apropriado, que é o plenário da Casa, e delegam a outras
instituições o poder de falar em seus nomes.
GANHAR NO GRITO
Trata-se de uma estratégia
deliberada, conhecida pela expressão em inglês lawfare (que, numa tradução
livre, significa “guerra legal”). Ela consiste em buscar vantagens políticas
por meio da exploração de minúcias da legislação e está por trás do processo
cansativo e irritante de judicialização excessiva que vem empobrecendo a
prática política no Brasil. A impressão que se tem é a de que o preceito
democrático segundo o qual as decisões são tomadas pela maioria caiu por terra
no Brasil. Qualquer resultado obtido em plenário acaba sendo desrespeitado e
transformado em objeto de contestação na Justiça — sobretudo por parte de
partidos que não têm força, capacidade de articulação política e muito menos
apoio popular suficientes para fazer valer suas posições.
É por essa razão que várias
medidas aprovadas no Congresso por ampla maioria, algumas delas com o apoio
incontestável da sociedade, perdem completamente seu efeito depois de passar
pelo crivo da Justiça. Basta que alguma bancada nanica não concorde com a
decisão da maioria para correr em busca de ajuda no tapetão. Há vários casos
como esses. Para citar apenas dois exemplos, basta lembrar a lei que instituiu
o Marco Temporal para a demarcação das terras indígenas e da que proibiu a
chamada “saidinha” de presos nos feriados.
Um levantamento feito pela
revista Veja no ano passado, mas que ainda não perdeu a atualidade, contém
números reveladores sobre essa prática. De acordo com a revista, entre 2018 e
2024, nada menos do que 807 recursos foram apresentados ao STF por partidos
políticos. Os campeões desse tipo de procedimento foram o PDT, com 108 ações, o
PSB, com 106, a Rede, com 105, o PT, com 100, o PSOL, com 91 e o PCdoB, com 57.
Como se vê, os partidos de esquerda são os campeões quando se trata de tentar
ganhar no grito as matérias que são incapazes de ganhar no plenário.
Os números são reveladores do hábito de se esconder atrás da toga do primeiro
magistrado que encontram pela frente para tentar chegar aonde não conseguem ir
com as próprias forças. Ele é uma das principais causas do empobrecimento da
política brasileira e do consequente enfraquecimento do poder do parlamento
frente aos outros poderes. Não são, como fica claro pelo número de recursos
levados pelos partidos aos tribunais, os juízes que tomam para si a iniciativa
de avançar sobre as prerrogativas do poder Legislativo. São os próprios
senadores e deputados que têm entregado de mão beijada parte de seu poder de
decidir ao Executivo e ao Judiciário.
O fenômeno é preocupante e os
únicos com poder de contê-lo são os próprios parlamentares. Mas, pelo andar da
carruagem e pela naturalidade com que a turma recorre à Justiça e ao Ministério
Público para fazer aquilo que lhes compete, o mais provável é que essa
esperteza ainda cresça muito antes de ficar grande o suficiente para comer o
próprio dono.
Título e Texto: Nuno Vasconcellos, O Dia, 9-3-2025, 0h
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Com Bolsonaro: genocídio. Com Lula: gargalo. PQP!
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